Crónica de Licínia Quitério | Conta-me uma história

OLYMPIA

 

De ontem e de hoje – Conta-me uma história
por Licínia Quitério

 

Bendito e louvado, o meu conto está acabado. Com esta ou outras fórmulas tradicionais, podem fechar as suas histórias os contadores, os conta-contos, esses andarilhos que percorrem o país a desenterrarem tesouros para os salvarem do esquecimento e depois os partilharem com adultos e crianças, em praças, em escolas, em bibliotecas. Recolhem histórias, às vezes dão-lhes novas roupagens e depois contam-nas, com vozes bem moduladas e gestos expressivos. Neste nosso mundo de desalentos, será sempre bom anunciar que há gente que se ocupa de coisas tão notáveis como o levantar da memória e a passagem do seu testemunho. São modestos acontecimentos que não merecem notícia da chamada imprensa de referência. É pena.  Por caminhos destes, não se perderá a sedução das vozes que dão asas aos sonhos suspensos dos olhos das crianças.

Foi em crianças que, se a sorte nos ajudou, vivemos horas mágicas, felizes, diria, a escutar palavras que os nossos maiores nos iam oferecendo, com elas desfiando cantilenas, lenga-lengas, em compassos bem marcados, um fiozinho de música a deixar-se ouvir, os nossos olhos e ouvidos presos à história que, pelo meio de encantos e temores, nos transportava para lá do outro lado das nossas vidas ainda pequeninas.

Depois, tempo fora, muitos de nós guardámos, sem que muitas vezes nos demos conta, uma voz, um momento, como aquele em que a avó dizia “pico, pico, serenico, quem te deu tamanho bico”, as mãos dela pousadas na saia preta de viúva de muitos anos, e nós a tentarmos acompanhar o ritmo da lenga-lenga com os deditos minúsculos beliscando, entre o indicador e o polegar, as pregas da mão velhinha, com manchas castanhas e estradas azuis sob o véu da pele. Ficou-nos o retrato da mão da avó, tão bonita, tão disponível, sossegada no colo, na cadeira baixinha, e a voz macia a repetir, “pico, pico, serenico, quem te deu tamanho bico”.

Os contadores de histórias fazem hoje o papel da avó, da mãe, do pai, do amigo velho e trazem aos meninos a magia do lobo mau que agora não se quer tão mau assim, ou da casinha de chocolate perdida na floresta desde tempos imemoriais, num país lá longe, tão longe que parece perdido no arco-íris.

Vá lá, conta-me uma história!

Licínia Quitério


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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