Crónica de Jorge C Ferreira | Vidas

Jorge C Ferreira

 

Vidas

por Jorge C Ferreira

 

O momento esperado. O tempo que deixa de contar. Um não respirar que sabe bem. Só eles e uma cama de amar. Sentem o corpo um do outro. Assim se completam num acto de enorme aventura. As cabeças a andar à volta. Um carrossel de prazer. Uma girafa a mostrar o seu enorme pescoço. Um cavalo num trote louco. Uma zebra vaidosa. Um carro de abraços de loucura. A corrida sempre sonhada!

Tratavam-se com ternura. Ternura inventada numa noite de mais inspiração. Ouviam música com o volume no máximo. Diziam que assim amavam as vozes que a agulha de diamante lia no negro vinil. As colunas de madeira davam o som ideal. Por vezes dançavam. Danças que hoje são belas recordações. Os cigarros iam ardendo em cinzeiros esquecidos. Algumas bebidas. Tudo antes da noite começar.

Por vezes ele tirava-lhe fotos. Fotos que ficaram para a eternidade. Eram muito novos e já tinham muita responsabilidade. Não faziam o que amavam fazer, mas tinham brio em cumprir as tarefas que lhes eram destinadas bem feitas. Nunca abdicaram desses princípios. Assim fizeram questão de fazer até ao fim da vida activa.

Pequena a casa, simples as coisas. Apenas corpos que se desejavam a qualquer hora. Uma sala e um quarto. Uma casa que parecia única. Feita à medida. Onde todos estavam mais juntos. Todos se ouviam em falas únicas e alegres. Momentos únicos. Num local especial.

Um restaurante ao lado de casa. Outra casa que consideravam sua. Cozinheiras de mãos de ouro. Tudo isso ia poupando a cozinha da casa. Tudo perto. Tudo continuava a parecer feito à medida. Um pequeno mundo numa rua onde se encontrava de tudo. Um mundo por vezes estranho e complicado e, no entanto, um mundo com regras. Alguns desmandos prontamente sanados. Uma vida de aldeia.

Hoje é uma rua sem vida, com alguma triste vida. Movimento de um tempo que não gostam. Quando passam por lá têm saudades de tudo o que existia. Só vêem as velhas tascas emparedadas. Sentem a falta das figuras típicas. Saudades dos bêbados com o coração à flor do vinho.

Naquela casa se amaram sem se esgotarem. Criaram filhos e fizeram festas impensáveis. Havia sempre lugar para toda a gente. Uma porta aberta à amizade.

Foi nesse tempo que começaram a viajar. O intuito era conhecer gente e usos e costumes. Chegarem e entregarem-se. Viajavam com pouco dinheiro. Conheceram países que já não existem. Cidades que mudaram de nome. Nomes que mudaram de cidade. Recordações que continuam vivas nas suas mentes. Gostos e abraços que persistem. Viram a história acontecer ao vivo. Eram novos e adoravam ver acontecer. Arriscavam e sonhavam. Abraçavam as terras que pisavam e abraçavam-se com força para selar mais um acontecimento que lhes preenchia a memória.

Memórias que nunca pensaram que iriam discutir ao serão enquanto a memória não os traísse. Por vezes aparecem na televisão sítios onde estiveram e alguma nostalgia se instala ou, então, o riso e a alegria ao lembrar situações lá passadas. É como se estivessem a revisitar a vida. Muitas vezes os olhos brilham. Momentos únicos que embrulham muito bem.

«Que história esta? Parece que muitas destas coisas me são familiares.»

Fala de Isaurinda.

«É possível. Esta é a história de muita gente. A história de um tempo.»

Respondo.

«Está bem! Esquisito, muito esquisito.»

De novo Isaurinda e vai, o indicador a abrir o olho direito.

Jorge C Ferreira Julho/2023(406)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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31 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Vidas”

  1. Regina Conde

    Vida repleta de amor ternura e cumplicidade. Gosto de te saber a recordar e partilhar o que sabes viver. Abraço imenso Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. São memórias de muita gente. Tantos caminhos paralelos. Muito grato. Abraço grande

  2. Branca Maria Ruas

    Memórias preciosas. Vivências únicas. Vidas cheias. Talvez alguma nostalgia mas sempre superada pela felicidade de quem sabe viver intensamente e de quem tem um passado rico de experiências. As emoções, essas, existirão sempre no coração de quem escolheu o caminho do amor e da ternura.
    Um grande abraço, meu Amigo!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Que bom estares aqui com a tua palavra. Viver e aproveitar a vida. Querer saber do outro. Muito grato. Abraço grande

  3. Cecília Vicente

    Como esquecer detalhes que dois sabem sem contar, a contar, saltam pormenores intímos sem pecado, pecar era esquece-los , lembrar é vivê-los intensamente, vive-se intensamente da saudade de ontem, de hoje, a saudade contada ao serão, só ambos sabem como foi e onde esses filtros emocionais se deram ao anoitecer e à noite que esconde tantas fantasias de palavras com imagens vivas. O bom de viver é praticar a saudade para tornar a vida leve…
    Abraço meu amigo!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Que belo comentário. Viver com intensidade, para depois lembrar. Nunca esquecer o que fomos. Só assim seremos. A minha gratidão. Abraço grande.

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Que bonita história de amor, escreveu. Felizes os que viveram a realidade de um profundo amor. Com ternura, recordam momentos vividos e sentidos. Suporte tão valioso, para quando a saudade vem. Amei esta história de vida, repleta de ternura e como Isaurinda, também não me é estranha.
    O Amor é mesmo uma coisa maravilhosa!
    É um prazer ler, o que tão bem escreveu, meu escritor de coração doce.
    Abraço grato e amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. É sempre tão doce a sua presença aqui. O amor é a força que nos move e suporta. Gostar do nosso igual. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  5. conceição lima

    Amigo, li a tua crónica de um fôlego!!Eu estive por ai´´…Vivi por aí… Ainda sinto, ainda relembro…Levaste-me na “locomotiva” da vida! Bem hajas! O meu abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Conceição. Que bom ter-se identificado com esta viagem. Todos temos um caminho a percorrer. A minha gratidão. Abraço grande.

  6. José Luís Outono

    Estimado amigo, mais uma vez “colei-me” aos teus traços criativos, neste dizer de momentos ímpares , com rasgos de saudades no recordar do hoje, em simbiose perfeita e amada.
    Tempos e sentires, respirações ofegantes no vaguear constante da nossa construção onde cada olhar é uma vitamina única
    Perdoa-me, estar ao teu lado nas reflexões apelativas que crias, quando vivencio páginas de livros ondulantes e navego sonhos de … quem sabe, poder repetir sorrisos de outros Sóis.
    Grande e grato abraço, amigo que muito estimo e admiro!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís. Meu Amigo, Poeta. É um prazer ter aqui as tuas palavras, caminhares comigo neste caminho de todos. A minha gratidão. Abraço forte

  7. Fernanda Luís

    Bonita crónica, romântica, ternurenta, escrita no seu peculiar estilo, que admiro.
    Desde criança que adoro histórias de vidas.
    A minha preferida, que ouvi vezes sem conta da minha avó paterna, a meu pedido, nas longas noites de inverno, diz respeito ao meu avô Carlos que não conheci, o meu grande herói de infância.
    O meu avô foi mobilizado para a Primeira Guerra Mundial, na Flandres. Como tinha os exames da terceira e quarta classes, integrou o telégrafo, nas trincheiras.
    Vi as cartas escritas por ele, dirigidas à minha avó. Descobri-as sozinha, envoltas numa fita com um laço de cor roxa. Que beleza, que ternura! Tenho uma vaga ideia do tipo de papel que não vi mais.
    Essa história real transportava-me para um mundo longínquo, desconhecido, que adoraria conhecer.
    Pedreiro de profissão, faleceu novo quando regressava do trabalho, num acidente de “camião”, numa curva amaldiçoada chamada Cotovelo. Sempre que lá passo me lembro do meu avô, meu herói, que não pude conhecer.
    Quando vejo imagens de guerra em trincheiras, o meu avô vem-me à memória. Que pena não o ter conhecido.
    Alonguei-me, peço desculpa.
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Que história de vida nos contou neste comentário. A vida é muitas vezes isso. Os nossos heróis para toda a vida. A minha gratidão pela sua presença e generosidade. Abraço grande

  8. Filomena Geraldes

    segredaste-nos de uma vida comum, como tantas outras.
    uma vida que não saiu na primeira página de um jornal
    não foi usada como ficção na novela das dez.
    não foi conversa de café.
    não serviu de inspiração a um escritor de renome.
    não foi comentada por vizinhas de nariz de fora da janela.
    não andou de boca em boca.
    não foi matéria de análise para fins estatísticos.
    não teve princípio nem fim.
    foi um amor daqueles que arde.
    mas não queima.
    que lhe chega a pequena casa.
    a vizinhança amistosa.
    um lugar como aldeia.
    é paixão de corpos enredados. de cama descosida de lençóis. uma mistura de êxtases e planuras.
    um vínculo que se prolonga pelos dias sem
    história.
    os beijos. mais que húmidos. os passeios entre mãos. as carícias fecundas. ardidas. seculares.
    as crianças num rodopio.
    a idade a avançar. os destinos sem destino.
    as terras que o mundo tem…
    as visitas à memória.
    esse álbum que só eles vêem.
    o sorriso desenhado de orelha a orelha.
    a ternura a não fazer de conta.
    um esgar de alegria. incontida.
    a lágrima com gosto a saudade
    a sinfonia de um amor. sem pauta.
    e o cronista que nos traz todas as segundas.
    impreterivelmente.
    uma visita nunca adiada.
    este gosto de o ler. e saber…
    o quanto ainda nos deslumbra.
    alicia. cativa. empolga.
    embala ternamente. numa história de amor sem princípio nem fim.
    num começo de noite. lua a crescer.
    às segundas.
    impreterivelmente.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Sempre de uma beleza única os teus Poemas feitos comentários. É imprescindível a tua presença neste espaço. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  9. Maria Clara

    Memórias de vidas longas, que me fizeram chegar aos meus vinte anos…em que por amor também, saí do meu país e viagem seguiu- me, no desejo sempre de viver mais e melhor…apesar dos acidentes em curvas perigosas.
    Obrigada querido amigo por mais uma história cheia de realidades e ternura e também saudades…
    Maria Clara

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Clara, querida Amiga. Viver a vida sabendo dos riscos. Saber dos outros. Saber da vida toda e saber muito pouco. A minha gratidão. Abraço grande

  10. Isabel Soares

    Uma crónica de memórias num registo poético. Uma melodia de palavras onde o amor romântico preenche o texto. Num lugar, num tempo outros de vivências vulgares, mas extraordinárias: a cumplicidade dos amantes. A dulpa identidade a acontecer num local de sentido e com sentido.
    Dois seres na viagem do afecto total.. Na simplicidade e grandicidade que acarreta. A vida do indivíduo a definir-se e realizar-se à mercê de um sentimento entranhado como essência própria e situado em diversos lugares, mas cujo reduto era o espaço comum da comunhão amorosa.
    Um escrito de memórias onde a memória, como entidade, assume a definição de uma vida numa leitura retrospectiva, onde o fragmento maior se encontra numa relação de amor absoluto e por isso significado e significante de si mesma. Uma viagem interna ao passado.
    Outras viagens são relatadas. Ditas sobre outros lugares, de forma igualmente bela. Locais de crescimento que se inscreveram no seu corpo. O habitam como a sua carne e pensamento. Num labirinto de emoções. Caminhos trilhados a dois. Percursos amorosamente partilhados e marcos de um viver e identidade relacional. Nutrida nos espaços que ocuparam e se amaram.
    O tempo tece teias e impiedosamente revela o quase nada das recordações. Apaga tanto. E é com nostalgia que o autor o revela.. Mas não consegue matar as impressões em si. O que foi permanece inalterável na sua memória e no seu ser. Recordá-lo é reviisitar-se.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Brilhante comentário. A sua forma de ler é uma arte. Que bom estar presente neste espaço. Tants generosidade. A minha imemsa gratidão. Abraço grande.

  11. Eulália Coutinho Pereira

    Bela crónica . Memória de vida feliz.amor e entrega. Viajar pelo mundo, conhecer outros hábitos e tradições.
    Viagem pela vida. Viver cada momento.
    Que bom ter memórias e passear pelas ruas da vida, ao som do amor.
    Obrigada Amigo, por partilhar esta viagem extraordinária.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. A sua presença sempre importante. As várias fases da vida. As várias fases da lua. O magnetismo da vida e do mundo. A minha gratidão. Abraço grande.

  12. Claudina Silva

    Que linda! Consegui vivenciar a tua excelente crónica! Amei Poeta Amigo Jorge C Ferreira! Beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina. Que bom estares aqui. Que bom teres vivido as palavras. Muito grato. Abraço grande.

  13. Cristina Ferreira

    Tão bonito!
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Que boa surpresa a tua presença. Muito grato. Abraço grande

  14. Margarida Macedo Pires

    Crónica de Jorge C Ferreira em 31 julho 2023 – VIDAS
    Que bem escreve, querido Poeta, permitindo-nos vivenciar outras Vidas e sentir o que os protagonistas sentiram já há tanto tempo atrás. Recordar é viver e ler os seus textos transporta-me a outros tempos, a outros lugares onde fui feliz. Bem haja!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Margarida. Tão importante a sua presença. Um tempo vivido, um trmpo que fica. A vida inteira. As memórias. A minha gratidão. Abraço grande.

      1. Margarida Macedo Pires

        Eu é que agradeço todos os bons momentos que a sua Poesia e os seus Textos me têm feito passar. É um grande prazer lê-lo! Bem haja!!! Grande abraço

  15. Rosarinho Carvalho

    Sempre maravilhoso o que escreves. Obrigada querido amigo poeta Jorge C. Ferreira

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Rosarinho, minha querida Amiga. Que bom é ter-te aqui presente. Grato pela tua generosidade. Abraço grande.

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