Crónica de Jorge C Ferreira
Temporal
O grasnar das gaivotas que voavam junto ao rio. Voos errantes, desordenados, um voar de perdição. Um tecto de nuvens negras que quase tocava o rio. Uma ondulação que lembrava o mar encrespado. Os sinais sonoros dos barcos a atravessarem o nevoeiro. O inesperado temporal. A chuva que começava a cair impiedosamente. As janelas viradas para o rio fechadas. Alguém, de vez em quando, arredava as cortinas e espreitava enquanto fazia as suas preces.
Uma fadista vai para o seu trabalho. Leva o xaile. A raça e uma raiva contra o tempo. Dizendo de si para si: «quem estará naquela casa para me ouvir?» Chegada à casa de fados, viu um cliente habitual. Estava debruçado sobre a mesa um jarro de tinto e um copo, enquanto escrevia os versos para um fado a que deu o nome de Temporal. Mais alguns clientes chegaram, a cozinheira trabalhava, os empregados de mesa prontos para atender os clientes, a dona da casa recebia as pessoas. Mais fadistas iam chegando. Apesar do temporal a casa ia-se compondo. Quando o primeiro fado irrompeu naquele espaço, as velas tremeram. A voz saiu sentida, os dedos a traçarem as franjas do xaile. O sentimento a dar força e sentido às palavras. Os aplausos foram vibrantes. O poeta deu o fado por acabado. O temporal tinha terminado.
Era já dia quando viram o céu de novo. O dia estava calmo, a querer ficar luminoso. O sol a querer despontar, intenso, brilhante. Apetecia passear e não ir deitar. O rio calmo e os barcos a passearem no calmo estuário. Operários iam limpando alguns destroços que o temporal tinha deixado. As gaivotas calmas assistiam a tudo com um prazer que debicavam. Foi à beira-rio que caminharam mais um pouco. Falaram sobre a noite e o dia. Sobre o tempo e o temporal escrito naquela noite. Quem o iria cantar? A quem iria oferecê-lo o Poeta? Despediram-se e foram para casa, já os trabalhadores desciam dos cacilheiros e se dirigiam para o trabalho. Começava o bulício da cidade. Os primeiros gatos apareciam nos telhados. O sol já iluminava os vidros das janelas que em breve se iriam abrir ao mundo. As cortinas abertas.
Toda esta história tem que ver com os acasos e ocasos da vida. Com os dias e as noites que se podem colar num caminhar sem rumo. O nosso desejo e tudo o que acontece e não acontece. As noites que duram muitos dias e os dias que duram muitas noites. Saber dar a volta aos maus momentos. Saber destruir a desgraça e construir os dias claros e alegres. Aprender a linguagem do amor. Sentir a felicidade a crescer. Lutar contra os maus sentimentos. Fazer dos costumes uma alegria. Esperar o sol do meio-dia. Gozar meio dia de luz solar. Amar os deuses que não conhecemos. Beijar uma mulher estátua e fazer dela nossa amante. A alegria estampada num rosto cansado. Um rosto sofrido, calado. Saber que todo o sofrimento tem um fim.
«Que história! Agora temporais e fados!»
Fala de Isaurinda.
«Foi um modo de relacionar tudo com a vida.»
Respondo.
«Tu estás mesmo cada vez pior. Como se não tivesses outro modo para escrever sobre isso!»
De novo Isaurinda e vai, com ar de quem não quer mais conversa.
Jorge C Ferreira Janeiro/2024(423)
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Obrigado Fernanda, minha Amiga. Tão assertivo e tão bem construído. Sim vamos dar a volta à desgraça. Pode ser um fado novo. A minha gratidão. Abraço.
A tempestade a abater-se sobre a cidade, que se adivinha ser Lisboa e as suas noites de fado. A capacidade de viver plenamente, transformando desgraça em alegria. A vida que se cumpre cada dia e deve ser vivida plenamente. Uma bela crónica!!!
Obrigado Margarida. Só a cumprir a vida, nos cumprimos. Um fado que chora e a alegria de uma manhã de sol após o temporal. Muito grato pela sua presença neste espaço. Abraço
Adorei o que li, Mestre das palavras. Só os poetas sabem falar de Lisboa, a nossa cidade encantada pelo Tejo, que a toca e a beija.
E reza a história que aqui nasceu o fado, dolente e doce, que dá vida à noite dos lisboetas. O poeta escreveu uma história linda, sobre a noite e o dia da cidade, que eu amo.
Vamos “Esperar o sol do meio-dia.” Luz dourada e única.
Grata, querido poeta por este maravilhoso texto.
Abraço grande.
Obrigado Maria Luiza, querida Amiga. Escreveu tudo tão bem. Tão lindo. Sentimentos que só a nossa cidade nos transmite. A minha gratidão. Abraço
Lindo. Noite de fado. Temporal no Tejo.
As águas do Tejo revoltas, vento forte. Noite de uma vida.
Fado vadio, voz dorido, voz sofrida a acompanhar a noite de tempestade.
Despertar da cidade, acordar do turbilhão da noite. No meio da escuridão, a luz do amor. Caminham lado a lado. Bonança após a tempestade.
Memória de uma vida.
Obrigada Amigo. Grande abraço.
Obrigado Eulália. Perfeito o que escreveu. A vida de Lisboa. O fado, o temporal e as gaivotas. A manhã a chegar ensolarada num cacilheiro. A minha gratidão. Abraço
Tu estás cada vez melhor, ao contrário do que dizia a Isaurindinha….
Tão imensos temporais.
Mares crespos.
Nuvens pesadas de brumas.
Um céu onde se inflamam riscos de fósforos e blasfemam os deuses.
Os barcos em terra.
Mulheres que oram.
Gaivotas a bramir.
Enfurece-se o vento e as rajadas rasgam e dilaceram um cenário dantesco.
Chovem multidões.
O Poeta rabisca uma letra. Sentida.Dorida.
A mulher que dá voz ao fado chora a noite.
Lamuriento fado…
Acorda a manhã.
Serena. Impávida. Inalterada.
Nuvens cruzam o azul. Viagens de ida e volta. O sol despe-se.
Tudo voltou à serenidade crescente. O dia olvidou a noite.
Esta é a narrativa dos dias nossos.
Depois do temporal, a bonança.
Dizem os antigos.
Para ti não há limites.
Intuis. Imaginas.Engendras.Esboças
Rascunhas. Recrias. Moldas.
És o artesão das névoas e das plácidas auroras.
Da fleuma. Da suavidade. Do júbilo.
O Criativo.
Obrigado Mena. Sempre belo o que escreves. “Vendaval passou/ nada mais resta”. Mas a manhã apareceu convidativa para novas aventuras. Um fado, uma fadista e um xaile. A minha enorme gratidão. Abraço
Uma cidade, pode ser qualquer uma, mas com aroma e gaivotas esvoaçantes que anunciam temporal alertando com os seus sons gulturantes gaivotas em terra tempestade no mar… O fado do povo, das gentes que vivem na noite, o sol que nasce e os faz regressar a uma outra vida, a um fado fadado que é a vida de muitos e muitas que sem cantarem o fado fazem do seu modo de viver o fado de uma noite só, conhecem momentos não a vida que queriam ter, é um outro fado…
Abraço meu amigo, que apesar de tudo o fado se faça ouvir no coração de quem ouve e não chore a desgraça…
Obrigado Cecília. Tão bom estares aqui. A minha cidade. A cidade branca que, por vezes, também se zanga. Uma noite de fados e a saída para uma manhã diferente. A minha gratidão. Abraço.
Uma história traçada na noite lisboeta , húmida e nevoenta , cortada pelos pios melancólicos das gaivotas e onde a voz de uma fadista nos ressoa . Parece que ainda a ouço, bem como todo esse bulício de um dia que desperta alegre e luminoso.
Outros dias e outra noites virão em que numa casa de fados, sentados a uma mesa, frente a um jarro de vinho tinto, assistiremos, ao fado Tormenta , cantado pela mesma fadista.
Nesse dia convidaremos o Poeta que escreveu a letra e lá estaremos a homenagear tudo quanto é castiço “nesta Lisboa de outras eras”
Obrigado Lénea. Lindo o teu comentário. Fica desde já tudo combinado. Só não bebo o vinho tinto. É tão bom estares aqui. A minha gratidão. Abraço
Amigo Jorge
Agrada-me imenso esta sua faceta de “desconstrução” das desgraças. Apologia da alegria, juntando-se à do amor, sempre presente na sua obra.
Desdramatizar é urgente, para que possamos sobreviver.
Nos momentos de temporal precisamos de abrigos, tanto melhor se acompanhados, com ou sem fado.
Aquele abraço