Crónica de Jorge C Ferreira | O início e o fim

O início e o fim
por Jorge C Ferreira

 

Poeira. Luz. Uma planta a despontar. Uma letra, uma palavra, um verso, um poema. Este início de tudo. Estas palavras inventadas. Um homem e uma mulher e a vida inteira por viver. Uma cabana e a vontade de nascer. Um mar e uma onda que nasceu muito longe. A areia e o aprender a desenhar com uma cana ou a folha de uma palmeira que se debruça sobre o mar.

Os sonhos que encantaram o homem e a mulher quando aprenderam a sonhar. Foi aí que nasceu outro tempo de vida. Um tempo que também é vivido. Um tempo que é passado num outro estádio. Há quem entre em sonos prolongados de onde, por vezes, não sai. Há pessoas que procuram e anseiam por esse estádio. Viver é um ofício complicado. Implica alegrias e sofrimentos. Amores e desamores. Fidelidades e traições. O bem-estar e a agonia.

Morrer faz parte desta vida. É o epílogo, nem sempre anunciado, de um tempo. Se será o fim de tudo depende das várias crenças e teorias que pululam pelo mundo. Eu que penso que é o fim de tudo, se tiver alguma surpresa não sei se estarei preparado. Se tal acontecer sou capaz de morrer de vez. Tudo isto são conjecturas sobre as quais as pessoas evitam falar.

No último ano, e nos primeiros meses deste, falou-se de mortes como já não me lembrava. As vítimas de um vírus, a quem deram nome e tudo, alastraram por todo o mundo. A globalização também tem os seus riscos. O turismo em massa, o consumismo, a fúria predadora do grande capital financeiro, as multinacionais, os crimes ecológicos e tantas outras coisas acabaram por ajudar a expandir a infecção.

Já andamos nesta vida há quase um ano. Já descobrimos vacinas contra o vírus. Está, no entanto, a ficar difícil vacinar as pessoas. As vacinas tardam em chegar. Médicos, cientistas, enfermeiros, auxiliares, bombeiros alertam para o caos que teima em se instalar. Bichas de ambulâncias à porta dos hospitais. Doentes a serem assistidos dentro das ditas ambulâncias. Todos sabiam que isto iria acontecer. Quem preparou a resposta. Esta triste e fatal realidade deve ser tratada como um cataclismo. Tudo isto obriga a respostas corajosas. A menos burocracia. A mais acção e menos retórica.

Para quem tenha dúvidas sobre a nossa capacidade de planeamento basta ver o que aconteceu no dia 17. Nas eleições antecipadas para a Presidência da República. Pessoas à espera horas. E lá apareceu o ministro do costume a dizer que correu tudo bem. Que fazer?

E voltemos ao princípio de tudo. Poeira. Luz. Uma planta a despontar. Uma letra, uma palavra, um verso, um poema. Este reinício de tudo. O Poema final, a última palavra, tudo enterrado. De novo o poeta se reinventa e escreve outro belo poema numa parede branca ainda dorida. Uma parede que rejuvenesce e cresce de alegria. Parede poema. Parede vida.

«Que coisas esquisitas escreves. Tu queres chegar a algum lado. Eu sei.»

Fala de Isaurinda.

«O que eu tentei dizer é o quanto é importante a poesia na nossa vida. Claro que tinha de falar da situação que vivemos.»

Respondo.

«Pode ser que tenhas razão. Tens de me explicar melhor essas coisas.»

De novo Isaurinda e vai, a mão a dizer adeus.

Jorge C Ferreira Janeiro/2021(286)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O início e o fim”

  1. Branca Maria Ruas

    E como se não nos bastasse a calamidade da pandemia, ainda temos que assistir a um discurso de ódio que nos faz estremecer quando percebemos que a porta à perigosa extrema direita está aberta com mais de 550 mil porteiros a fazerem alas para a deixar entrar.
    Precisamos de poesia, de sonhos, de utopias… de Arte para recuperar o fôlego.
    E precisamos de cumprir com a nossa parte e ficarmos em casa para nos protegermos e protegermos os outros.
    O medo e o pânico já estão instalados. Precisamos de estabilidade, de paz, de união. Estou cansada do ruído de tantas certezas acusatórias.
    Nenhum pais do mundo estava preparado para uma pandemia!
    Um abraço grande, meu Amigo! Cuida-te e diz à Isaurinda para se proteger!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Não há, felizmente 500000 facistas em Portugal. Há muito voto de vária índole. Tudo tem de ser estudado. Agora temos de nos cuidar muito. A Isaurinda cuida-se. Abraço grande

  2. maria fernanda morais aires gonçalves

    Cá estamos nós os preparados para viver o ano zero. É como se tudo vá começar a partir daqui. Tudo vai ser diferente. Há até quem quem nos queira convencer que a democracia no nosso País nunca existiu. Estamos todos baralhados e confusos. Não posso posso acreditar! tirem-me deste pesadelo! O que faço eu à minha plantação de cravos de Abril no meu quintal?
    Inventem uma vacina directa ao rabo deste corona! Foi a pior cena da pandemia.
    Um abraço para ti sempre na luta.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Fernanda. Temos de vencer o medo. Tu tens de plantar mais cdavos. Vamos ainda fazer uma festa. Abraço imenso.

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Sublime. Poesia. Vida. O fim de tudo ou o não fim.
    Momentos que estamos a viver, como não temos memória. Descontrolo total.
    O mundo a enlouquecer.
    Temos que resistir, meu amigo.
    Obrigada pela poesia da sua escrita, pela verdade em cada texto.
    Obrigada por estar desse lado.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Não há, felizmente 500000 facistas em Portugal. Há muito voto de vária índole. Tudo tem de ser estudado. Agora temos de nos cuidar muito. A Isaurinda cuida-se. Abraço grande

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. . Temos de ter coragem para derrotar todos os medos. Só lúcidos venceremos. Abraço enorme

    3. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Ganhar coragem para lutar contra os medos tanta coisa para mudar que virá aí? Abraço Grande

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Li meu amigo. Fiquei sem palavras.
    Um poema verdadeiro, todo ele baseado, no mal que avassala o Mundo. E tanto mais foi dito e bem. Eu adorei. Tinha mais para dizer-lhe, mas falar da morte, eu não consigo, o dia de hoje foi muito pesado para mim. No de ontem nem quero falar. Vou ficar por aqui, com palavras suas, meu querido poeta. “O que eu tentei dizer é o quanto é importante a poesia na nossa vida.”Abraço imenso, meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Sim, minha a Poesia é imprescindível, pelo menos para mim. Quando dois Poetas se escrevem nascem poemas e livros de poesua. Com um Poea na mão venceremos. Abraço enorme

  5. Regina Conde

    Questiono-me porque gosto deste texto em que morte é uma constante. O prometido não acontece. A luz ao fundo túnel sumiu. O dinheiro que compra tudo desde que seja em proveito dos corruptos. A tristeza que não consigo disfarçar pelo dia em que finalmente saímos à rua. Ter a sensação péssima que regredir. A resposta que encontro é que tens uma lucidez escrita, de forma que me acalma sem camuflar a verdade. Só os Poetas de verdade tem esta sublime capacidade. Sei que te custa horrores pensar no que pode acontecer se desistirmos. Meu Amigo, vamos tentar de novo. Obrigada Jorge por estares aqui. Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Um percurso pelo escuro da vida. Nascer, viver e morrer. A Poesia e a conversa dos Poetas. Os sonhos. Abraço imenso

  6. Mena Geraldes

    Como me sinto quando te leio?
    Como se te conhecesse há muito.
    O poema. Os corpos. A linha que os junta. Homem e mulher. Uma fonte. Um eclipse. A respiração cálida de um encontro. O estar a descoberto. O ser ilha. Receber a chegada de um visitante. E agradar aos sentidos. A todos. À mente que não sossega.
    A calamidade. Até quando? Estas paredes fechadas. Porquê? As mortes. Sem um fim à vista?
    As vacinas…
    As reticências. Sempre as reticências.
    E ontem. O cortejo de discursos. Os vencedores e os vencidos. E um desconforto. Um receio. O nó na garganta. Os números.
    A discrição e a apoteose. Um circo. Todo o clamor. Os que não querem acreditar. Como foi possível? Como se chegou a este ponto?
    Democracia. O que é feito de ti? Andas perdida? Ou desacreditada? Foi tamanha a luta e, agora…?
    Não creio que este povo não acorde. Não se esclareça. Não se desiluda.
    Entretanto…
    Não sei se os poetas sabem o que escrever.
    Eu estou meio triste. Meio confusa. Meio nada. Só pela metade.
    Durante cinco anos, descansemos.
    As legislativas? O que nos espera? Não nos vamos armar em adivinhos. Mas acho que já chega de surpresas. Chega! Não queremos mais! Não!
    Falta-me a inspiração.
    Dizer o quanto me fazes falta. O que teimas em dizer é fatídico. Alarmante. Perigoso.
    Só a poesia me apraz. Os poetas. As palavras. Tu.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Sabes como gosto dos teus comentários. Além de agradecer não há nada a acrescentar. És o comentário feito texto. Abraço enorme

  7. Cristina Ferreira

    Muito importante. E confesso que li esta crónica como se de um poema se tratasse. Hoje, particularmente e ainda no rescaldo das eleições e do assustador resultado em que um discurso de ódio se armava em vitória, as tuas delicadas, sensíveis, mas sempre verdadeiras e oportunas palavras, ajudam-nos a acalmar o espirito. Mesmo a Isaurinda, que mesmo sem saber ler, sente-se bem a ouvir.
    Sim, a poesia salva.
    Abraço-te muito, querido poeta

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. É a Poesia que nos salva. É o escrever que ama a vida. Palavra a palavra cresce dentro de nós um desassossego imenso. Grande abraço

  8. Isabel Torres

    Mais uma bela crónica, quase jornalística ,de natrativa centrada na morte e na morte como está a acontecer nestes tempos estranhos. E spesar de tudo a poesia. Não será ela a dizer a verdade das coisas?

    1. Maria Arlete Duarte Castro Abano

      Hoje estou triste…
      Vamos a caminho dos 11000 mortos de um dia para outro, tudo porque alguém achou que o milagre de Fatima acontecia e .. nada se planeou !!
      Observo o meu SNS , o nosso SNS , exausto , em ruptura mas com todos os seus profissionais com uma capacidade de resiliência fabulosa .. não desistem , não deixam cair os braços mesmo quando os meios não existem !!
      Tanto lutamos todos em conjunto para termos um SNS que esteve em vigésimo terceiro no ranking da OMS e, em 10-15 anos um desinvestimento nos nossos hospitais e não só , colocam-no neste estado calamitoso .. é triste , muito triste !! Será que a pandemia nos ensinará qualquer coisa ??!!
      Sei que é um momento de união para resolvermos o mais depressa possível todo este drama .. Mas os responsáveis por tudo isto terão que ser levados à justiça porque a culpa não pode morrer solteira em memória de milhares de concidadãos mortos nesta pandemia !!

      1. Jorge C Ferreira

        Obrigado Maria Arlete. Temos de ter coragem. Coragem para vencer o medo e pars lutar por SNS de novo pujante e entre os melhores. Nada bai ficar igual. A pandemia mata e muda a vida. Vamos ser exigentes.

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. O caminho para o desconbecido. A Poesia sempre. A Poesia é o que canta e encanta a vida.

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