O início e o fim
por Jorge C Ferreira
Aqui estamos os dois cúmplices, neste rés-do-chão de quatro assoalhadas. Parece que estamos presos, mas transpiramos liberdade. Daqui saímos a última vez para votar. Por vezes vamos espreitar o correio. Outras, receber a comida à porta. As eleições são acto que discutimos os dois e, até agora, temos chegado a uma opção que acaba por ser única. Normalmente somos uns perdedores. No entanto, para nós, o acto de votar é uma vitória.
Lembro-me da festa que foi para o meu Avô a primeira eleição em liberdade. Como foi bonito vê-los a descer a rua às primeiras horas da manhã vestidos como se fossem para um casamento. Que bonitos iam os meus Avós para festejar a liberdade. Foi um dia de festa. Um dia de liberdade e respeito. As luzes apagaram-se muito tarde nesse ano de 1975. A R.T.P. fez horas extraordinárias. Os matutinos ainda traziam os resultados provisórios. Fizeram-se segundas edições. Os vespertinos saíram mais tarde. Lá em casa compraram-se todos os jornais.
As primeiras eleições de que me lembro foram as de Humberto Delgado à Presidência da República. Tinha nove anos. Lembro-me de todos lá de casa apoiarem o General sem medo. Lembro-me do que me contavam. Os G.N.R. a cavalo a quererem entrar no café Monumental e no Monte Carlo após um comício altamente vigiado no Liceu Camões. Lembro-me das fotos do General no Porto, um mar de gente na Avenida dos Aliados. Um povo inteiro que se levantava e gritava quando junto: viva a liberdade. Lembro-me do meu Avô e o meu Tio Avô irem receber o candidato a Santa Apolónia e o meu Tio Avô chegar a casa com uma mão ferida enquanto fugiam da polícia de choque.
Foi aí que apareceu o trocadilho: Polícias cães e cães polícia. E um outro que, muito mais tarde, usámos na Veiga Beirão: as frações impróprias, nome dado aos G.N.R. a cavalo, porque as bestas de cima eram maiores que as bestas de baixo. Naquela pequena ferida na mão do meu Tio Avô percebi toda a brutalidade de uma gente que obedecia cegamente a quem odiava a liberdade. O velho das botas mexia todos cordéis em São Bento, dava ordens à polícia política e despedia ministros com um cartãozinho que lhes dava entrada para um lugar bem pago num banco ou numa grande companhia. Era assim o baile dos fantoches.
No dia das eleições uma grande frustração e impotência lá em casa. Era o rádio que ia dando os resultados. A chamada chapelada tinha sido bem feita. Ganhou o Almirante sem navios que ficou conhecido pelo corta-fitas.
Em 1969 foi a primeira vez que me meti numa campanha eleitoral. Era a Comissão Democrática Eleitoral, a sede era no Campo Pequeno. Todos sabíamos que nunca nos deixariam ganhar. Tinha só vinte anos. Mas como dizia o Zeca: “é preciso avisar a malta.” Um país tão cinzento que muitos se confundiam com outros. Como diziam: Até as paredes têm ouvidos.
Sobre as últimas eleições deixo aqui um texto escrito no Domingo à noite que já publiquei na minha página:
Não tenham medo por quase quinhentos mil, nossos concidadãos, terem votado num indivíduo inqualificável, num troca-tintas. Num populismo de algibeira. Numa coisa que cheira a defuntos e que é suportada por trauliteiros e salazaristas de antanho. No essencial a democracia venceu e vencerá sempre. Muitos, entretanto, irão acordar. Nunca desistam de lutar pelos vossos direitos. Nunca se deixem iludir por vendedores de banha da cobra.
Força.
«Lá estás tu e a política. Tu até sabes escrever sobre outras coisas.»
Fala de Isaurinda.
«Por vezes temos de falar. Relembrar certas verdades às pessoas.»
Respondo.
«Eu sei que as pessoas têm a memória curta. Mas não abuses.»
De novo Isaurinda e vai, o punho erguido.
Jorge C Ferreira Fevereiro/2021(287)
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
A memória
As memórias
A verticalidade do mestre
Abraço forte
Obrigado Cristina. Tentei sempre. Espero continuar. Paguei por isso. Mas valeu a pena. Abraço Grande.
Tempos de muita incerteza; a informação era dúbia e a ansiedade doentia que nos marcava a alma. A carneirada não acabou: apenas se fragmentou sob teorias de pouco convencimento.
Hoje podemos pensar livremente e nem por isso somos livres; temos as grilhetas do capital financeiro que domina as economias.
Qual o abismo que nos espreita?
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. É verdade é o capital financeiro que domina o mundo. Determina as crises para enriquecer mais um pouco. A nossa liberdade é cada vez mais condicionada. Abraço forte.
Tempos de muita incerteza; a informação era dúbia e a ansiedade doentia que nos marcava a alma. A carneirada não acabou: apenas se fragmentou em sob teorias de pouco convencimento.
Hoje podemos pensar livremente e nem por isso somos livres; temos as grilhetas do capital financeiro que domina as economias.
Qual o abismo que nos espreita?
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Já respondi acima.
Que bela crónica. As minhas memórias levaram-me ao tempo das lutas estudantis. Levaram-e à Lisboa do início dos anos 70, em que fervescia a busca da liberdade,abafada pela PIDE.
Tanta história haveria para contar desse tempo.
Hoje,a viver uma situação de confinamento, como não há memória , assistimos ao resultado de eleições preocupante. Como é possível conseguir votos, através do discurso exacerbado, populista e absolutamente contra a democracia.
Temos que resistir, meu amigo.
Obrigada por tudo o que transmite pela sua escrita.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Tanta coisa que havia para falar. Como vencíamos o medo. A rebeldia. O sonho. Os bufos. As prisões. A bestialidade. Um grande abraço minha amiga
Gostei muito da sua crónica. Enquanto lia, era como se estivesse a ver um filme. Foi exactamente assim. Lembro a preocupação de minha mãe, minha também pois meu pai quis ir dar uma espreitada ao comício. Coreu como já referiu e bem. Mas felizmente o pai chegou bem e um pouco animado. No final o resultado foi muito triste. O que escreveu, em relação ás ultimas eleições, está lindo e deram- me alguma tranquilidade, quando li, pois quando vi o resultado das mesmas, “apanhei um susto.” Vamos acreditar, mas atentos. Sempre uma escrita ímpar. Obrigada. Abraço enorme.
Obrigado Maria Luiza. Para mim é uma alegria imensa ser minha leitora e comentar de forma sublime o que escrevo. Um abraço enorme
As minhas primeiras foram as de Norton de Matos. Tinha 10 anos, mas ia com a minha tia e ” correligionários ” para o Grémio Operário onde, em Coimbra, era a Sede de N.M. Foi o 1º contacto com a mal-fadada PIDE que, num dia por ali entrou e acabou com a Reunião. Tossam, contava histórias, aos mais novitos, também desenhadas, num quadro. Confusões, sempre. Nas de H. Delgado, já era crescida, tinha 18 anos. Mas em 1969 foram as ” tais ” pretensamente ” livres”. Aí, já houve movimentos partidários , fomos às urnas numa ” palhaçada ” fascista. O teu texto sobre as últimas está muito bom. Foi mesmo assim e segui-te no que foste escrevendo. Foi o que foi, com um fascista a concorrer, quando temos uma Constituição que o proíbe.. Gostei muito da tua Crónica de Hoje. Vamos a ver se segue desta vez. Beijinhos <3 <3
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Que bom estares aqui. Toda a gente devia ler este teu texto. Uma maravilha. A luta foi sempre a tua vida. Vamos continuar. Abraço enorme
Um dia de desconfinamento , um dia de assinalar com uma cruz a escolha de um presidente, mais, de escolha de um presidente com um partido…
Cumpri, sai logo cedinho para cumprir o meu dever de cidadã. Espero que algo melhor, espero, e muito, que algo, ou tudo seja diferente, que o medo seja feito de coragem para afastar um mal que ganha com espanto meu votos que nunca pensei ser possível.
Abraço meu amigo. Toma todo o cuidado tu e a Isabel para que tudo possa ficar senão melhor que fique a esperança de que vamos no caminho certo ainda que com percalços de alguns Chicos- Espertos.
Obrigado Cecília. Mais um acto democrático. Mais uma vez a democracia venceu. Vamos matar o medo. Cuida-te muito, minha Amiga. Abraço Grande
O meu pai votou Humberto Delgado saiu a correr e foi banhado pela tinta azul.
Nas primeiras eleições em liberdade mandou fazer um fato ao alfaiate cinzento e com riscas brancas colete incluído e lá foi de cravo ao peito… Vesti-lhe o mesmo fato quando partiu. Lutar sempre e nunca desistir devemos lembrar sempre. Abraço
Obrigado Isabel. Que coisa bela nos conta. A festa da liberdade merecia um fato. Um fato único. Um cravo na lapela até ao fim. Grande abraço
Memórias narradas numa escrita de qualidade e verdade visceral. Um modo de ver a realidade,simultaneamente subjectiva e objectiva. Sentidas como uma missão a não esquecer nunca.
O nosso escrivão fez uma viagem no tempo.
E que viagem…
De como viveu, ainda muito jovem, as primeiras eleições. As que um general “sem medo” saíu derrotado por quem, no fundo, era quem tinha medo…De fracassar. De perder o domínio e o poder.
As aberrações provocadas por esse energúmeno que dá pelo nome de poder…!
Como senti o nosso relator vibrando, evocando com ardor, um período de tentativa de mudança, dando cor e vida a um sentimento de esperança. Depois, depois, dando por si a saber de uma escolta de repressores que saíam para a rua para perseguir e apagar, violentamente, o sonho.
Como também vi o nosso escrevinhador de “pena na mão” e de alma desperta alinhavando emoções e desnortes, deceções e dissabores por esta que foi a última eleição.
Ele é o que escreve.
É o que sente. Sem tirar nem pôr. Ele é assim. Homem de uma só palavra, de um só ideal e de uma imensa integridade e coragem.
Jorge C. Ferreira, bem hajas!
Mena, minha Amiga. Obrigado muito pela generosidade como comentas o que escrevo. Os teus comentários são textos que merecem ser lidos. Agradeço-te muito. Abraço enorme
Obrigado Isabel. Sim, minha Amiga. Para mim há um ladi certo da vida: estar ao lado dos mais desfavorecidos. Assim me ensinadam a estar na vida e assim continuo. Abraço Grande