Crónica de Jorge C Ferreira | O Apagão

O Apagão
por Jorge C Ferreira

 

Certa será a noite em que todas as estrelas se irão apagar. Em que alguém irá desligar um botão desconhecido que encerrará a electricidade. O dia em que a escuridão será total. Uma noite inteira e sem sentido e eu sem fósforos para acender uma vela. O apagão nunca visto. Todos os “gadgets” sem utilidade. Escrever às escuras. Molhar o bico do lápis com a língua e escrever molhado num caderno de capa dura.

Esperar por tudo e não saber de nada. Um velho cheio de vontade de ver deixa os seus olhos cegos muito abertos. Tão abertos que quase iluminam os que ver não conseguem devido à falta de luz. As baterias esgotam-se de cansaço. É aos apalpões que conseguimos chegar a nenhum lugar. Há quem vá de gatas esfarrapando roupa e corpo. Nunca o chão esteve tão limpo. Nunca gatinhar foi tão adulto.

A lua que dizem que é nova também não se mostra. O frio é imenso. Ninguém consegue falar com ninguém. Só os que moram na mesma casa e aos encontrões se vão encontrando. Nesse momento sentem uma inesperada alegria que há muito não sentiam. Demoram-se em afectos e descobrem que o amor não escureceu. Assim se tentam aquecer.

«Só nos faltava isto!» exclama um surdo mudo através de linguagem gestual, uma fala que não se ouve e ninguém vê.  Não temos notícias. Não sabemos de nada. Estamos mesmo confinados. Desta vez é a sério. Quem tramou tamanha crueldade. Não sabemos quantos morreram hoje com o malfadado “Covid 39”, de quantos se infectaram. Não sabemos da epopeia das vacinas que chegam e não chegam. Dos estudos, das comissões que vão coordenar a comissão que vai decidir os planos e entregá-los ao ministro para decisão final. Afinal não. Ainda tem de ir ao Presidente da República para promulgar, ou não. Logo não se verá.

Mas para que estamos a falar destas coisas se ninguém vê nada. Nunca saberemos se os olhos se vão habituar ao escuro. Não sabemos, se quando os olhos se encontrarem de novo com a luz, vão ficar cegos ou rebentar com tanta luz. De momento nem os ladrões descortinam as casas que são boas para assaltar.

Vivemos num mundo apagado. Os astronautas que estão na estação espacial esperam a queda livre. Tudo está suspenso. Não há vacinas para isto. Onde irão cair os que voam?

Nos montes mais altos avistam-se fogueiras. Ali há alguma luz. São terras onde ainda se usam fósforos. E onde a madeira e a caruma se encontram aos pontapés. Serão esses que mais tarde ou mais cedo virão tomar conta das cidades e fazer de tudo isto uma luz imensa.

Que escuridão é esta? Que culpa estamos a expiar. Mesmo os que rezam a todos os santos que conhecem continuam às escuras. Vale-lhes a fé.  Nunca a ladainha de todos os santos foi tão escutada. Estamos presos em gaiolas e não sabemos voar. Que buraco negro é este? Será que haverá alguma saída para isto?

«Olha lá, tu endoidaste de todo. Não chega o que chega?»

Fala de Isaurinda.

«Tenho direito a imaginar coisas difíceis de compreender.»

Respondo.

«Sim, sim, está aí uma coisa bonita. Só tu.»

De novo Isaurinda e vai, da mão fechada um dedo espetado chama-me maluco.

Jorge C Ferreira Novembro/2020(278)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado. Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence; Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019. Participou no livro de homenagem poética a Paul Celan – A Norte do Futuro. Editou em 2021

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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O Apagão”

  1. António Feliciano de Oliveira Pereira

    A falta de luz é um problema de muitos que se dizem iluminados!
    Os cegos navegam melhor na escuridão!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Sábio comentário. Abraço forte

  2. Cecília Vicente

    Que vida esta a nossa, a minha, a tua, e a dos outros, os quais nem bom dia ou boa noite dávamos por perda de hábito, a não ser, os conhecidos, os amigos e passantes educados que com eles traziam costumes de aldeia.
    Das poucas vezes que saio e quando o faço as luzes ainda iluminam a rua, quando a claridade se mostra ninguém se reconhece, será assim o futuro dos que ficam neste novo mundo? Que será das histórias à lareira? Dos contos e das aventuras? Quem iluminará a noite e, se restar afectos onde estarão guardados: Haverá nas escolas essa disciplina com nota de passagem de ano? Não se pense que depois disto seremos mentalmente sãos, creio que tal como a pobreza haverá uma meia loucura inconfessável. Haverá janelas e ruas desertas, os frágeis mudaram-se para os jardins longínquos. Os novos que contaram eles, como escreverão eles o tempo que foi e há-de continuar pela diferença? Abraço meu amigo Jorge, não te esqueças do A B C do cuidar, é a nova cartilha do aprender…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Este ano feito noite. O não nos conhecermos. Coragem. Não antecipemos o sofrimento. Vou querer saber cuidar. Abraço

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente crónica. O tempo em que vivemos. Dias e noites de escuridão. Escuridão para quem vê e para quem não vê. As notícias que não trazem a claridade, que tanto procuramos. As vacinas que prometem luz ao fundo do túnel. Não se sabe a quem chegarão.
    Assim nos vamos arrastando, tal como os dias, as semanas e os meses.
    Vamos continuar à espera que surja a luz.
    Obrigada, meu amigo. Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. A escuridão, breu. Essa metáfora de um tempo roubado. Abraço grande, minha amiga da baixa pombalina.

  4. Regina Conde

    Inteligente a forma que descreves o futuro. Apagão que está a acontecer para tantas pessoas. Vamos juntarmo-nos sempre que a claridade diminuir. Irás molhar na língua o lápis que te acompanha e contares como foi acordar com o sol em pleno. A Isaurinda é preciosa nas tuas crónicas. Um abraço cheio de luz.

  5. Cristina

    Uma crónica que é uma metáfora à realidade que chegámos. Um apagão que poderá nos ajudar a encontrar o caminho certo até encontrarmos a Luz. O apagão que nos ajuda a ir ao encontro do interior do nosso Ser. O apagão que nos leva a descobrir a essência que existe em cada um de nós .
    Gostei muito, querido Jorge .
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Assim espero minha amiga. Espero estar cá para fazer a festa do primeiro sol. Abraço grande

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Vamos procurar-nos e aprender o que falta de nós neste escuro tempo. Grande abraço

  6. ivone Teles

    Meu amigo, já caminhamos em passos e pensamentos negativos. Na TV alguém diz que toda a comunidade civil tem de se unir para que apareça a LUZ. Juntarmo-nos e, assim esperaremos por novos tempos. Eu começo a ter medo. Que deus decidiu castigar-nos assim. E porquê ? É injusto misturar quem se julga dono do mundo e os seus ” escravos” que somos todos os outros. Esta escuridão junta os que ainda se encontram, porque, juntos vivem. Haja alguma coisa que nos aconchegue. Não gosto de apagões. Lembro-me que será assim, um dia, para todos nós. Mas estaremos a ” dormir o sono eterno” e não daremos por nada. Diz à Isaurinda que tens uma amiga que concorda contigo. Nunca imaginei viver assim.
    Mas, querido amigo, tu trazes sempre para nos oferecer a ESPERANÇA. É a essa que me quero agarrar. E assim será. Esperançosos nos uniremos. e vamos ultrapassar. Beijinhos querido amigo. Muita ternura para ti e Isabel, hoje aniversariante. Beijinhos <3 <3

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Tu sabes ao que a vida sabe. Tu és a minha Amiga/irmã. Lá estamos a passar mais uma provação. Resistir. Coragem tens tu. Abraço imenso

  7. Porque precisamos de nos evadir da realidade algumas goras por dia, é bom ter ocupações. Desafios novos, aprendizagens.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sofia. Sim, precisamos de nos reinventar. Porque o sol vai ser diferente. Um abraço grande

  8. Lília Tavares

    Amigo, constróis uma alegoria que até me parece possível, tal não é a escuridão deste ‘muro’ a que já nos habituaram (?). Continuo a ver claridade porque a sinto cá dentro.
    Sempre gostei das noites, dantes frequentes, em que não havia electricidade. Falávamos mais uns com os outros, fazíamos jogos no corredor, comíamos à luz de uma vela. Sentia-me a flutuar.
    Deste apagão não gosto, tal qual a nossa Isaurinda. Não por não ter velas, não por não ter fósforos. Amo a noite, o vento, o mar e a claridade.
    Bonita crónica para nos fazer pensar. Beijo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Lília. Que novo Sol iremos encontrar. Ver a noite de 24 horas e esperar pelo. Sabes que também ami tudo o que falas. Abraço Grande

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