Crónica de Jorge C Ferreira | Noites que nos devoram

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Noites que nos devoram

Noites de um tempo inesperado. Noites que não correm. Noites que se passeiam entre nuvens desidratadas. Noites com cheiro. Noites densas e intensas. Noites que se seguem às noites. Um escuro que nenhuma luz desfaz. A falta da luz maior.

Tudo cerrado. Nem uma fresta para o outro mundo. Nem uma gota de luz. O escuro total. Reconhecer a face do outro pelo tacto. Conhecer os lábios do outro através dos nossos lábios. O amor a crescer como se o mundo tivesse acabado. O medo do amor cansar. Viver numa outra luz. Acreditar que se pode viver assim.

As portadas, os pesados e escuros cortinados cansados de reterem a luz. A noite que se prolonga no tempo. O sexo sem horários. Um tempo com luz própria. Conhecer tudo no outro. Acender todos os outros sentidos. Pelo sim, pelo não usar uma venda negra nos olhos. Conhecer os cantos à casa. Ter toda a vida preparada. As refeições ligeiras. Viver como se estivéssemos num bunker após uma explosão nuclear.

Perder a noção das horas. Não saber que tempo está. Estar cego e ver. Conhecer de cor o cheiro do outro. Fazer desse cheiro o seu perfume preferido. O duche de água tépida. Um temporário ocaso do cheiro. Uma coisa muito breve. Todo o ambiente nos leva a viver unidos.

Não saber que, numa rua lá fora, há gente que anseia pelo silêncio do escuro. Alguns até o querem experimentar sozinhos. Uma experiência mais radical. Fazerem amor consigo próprios. Do êxtase quase conseguirem a luz. A ambição solene de se bastarem a si próprios. Aprenderem a falar consigo. Diálogos intensos que ajudam a passar o tempo. Acontece, por vezes, haver quem se zangue consigo mesmo. Brigas que duram pouco tempo. Situações difíceis de aturar para quem vive só e no escuro.

Convém, nesta altura, falar das vendas. Vendas de veludo, como de veludo são os cortinados. Dos tecidos nascem muitas vontades. A suavidade do veludo apela a acções de ternura intensa e também a saudades que consomem os corpos.

De muitas destas longas noites foram levadas à cena peças de teatro e feitos filmes e documentários. Gente houve que entrou nas salas viu o escuro fazer-se e assistiu a cenas num escuro único. Ouviam-se as vozes. Ouvia-se o rocegar dos corpos. Aprendia-se o peso imenso das palavras na forçada escuridão. Havia quem não aguentasse tanta escuridão. As vozes ficavam mais pesadas. Nem uma única voz, nem uma fala sobreposta. Os corpos eram o veludo das vendas.

Corpos suaves. Corpos que aprenderam a deslizar no escuro. Corpos de olhos vendados. Colchas acetinadas. Tudo negro. Tudo opaco. As vozes a enrouquecerem. Preparar os olhos para a luz. Preparar o olfacto para novos cheiros. Preparar o tacto para novas realidades.

Vai chegar o dia.

«Que raio de coisa foste escrever! Agora queres que vivamos na escuridão.»

Voz de Isaurinda.

«Há quem viva em completa escuridão. Só me fui basear nisso.»

Respondo.

«Olha, tu não me venhas com trocadilhos, que eu já te conheço bem.»

De novo Isaurinda e vai, uma luz na mão.

Jorge C Ferreira Julho/2019(209)

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.


 

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18 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Noites que nos devoram”

  1. António Feliciano de Oliveira Pereira

    No silêncio da escuridão há mais capacidade de reflexão para interiorizar a vida.
    Também somos seres nocturnos que vagueamos pelo tacto.
    Um abraço, Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Somos seres com uma capacidade de adaptação fantástica. Já soubemos contornar a escuridão! Abraço

    2. Luisa Sousa

      Amei o texto e , a ideia da escuridão subjacente aos tempos circenses que vivemos atualmente. Como deve ser difícil viver só e no escuro. Por vezes nem o tato nos salva da solidão. Invejo a Isaurinda e o seu pragmatismo, se calhar o escuro não a aflige e muito menos a solidão. Pensar muito nas coisas nem sempre nos faz bem.

      1. Jorge C Ferreira

        Obrigado Luisa. Pois é, mas pensar é essencial. Deve ser um tempo da nova vida. Seja no escuro, seja na luz intensa. Abraço.

  2. Jorge C Ferreira

    Obrigado Madalena. Esta outra maneira de estar no escuro. Este negro fogo. Abraço

  3. natalia maria faria rodrigues

    Que cumplicidade! Perfeita simbiose onde a escuridão do ninho é aconchegante. E là fora…mesmo os que aìnda não o sabem, desejam alcançar a êxtase dessa cumplice escuridão, exponente màximo de todos os sentidos que torna a memòria nitida. Tão bom lê-lo. Obrigado e um forte abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Natália. A escuridão. O anonimato. O esconderijo. O sair para a luz. Abraço

  4. Branca Maria Ruas

    Há quem viva em completa escuridão.
    Há os que se incandeiam com a luz, os que estão impedidos de a ver e os que têm a ilusão de não viver nas tréguas.
    Mas tu sabes que há noites com mais luz que o Sol. Só assim se escrever sobre a escuridão.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Como passeias pela minha escrita. Quem biveu muitos anos na escuridão tem dificuldade em enfrentar a luz. Abraço

  5. regina Conde

    Quando se faz noite saudamos os corpos. Adivinham-se vontades. Silêncio só o som da noite. Percorrer com avidez o que o desejo consente. Não enganas a Isaurinda. Leva luz na mão. Entende o que significa Noites que nos devoram. Abraço Jorge.

    1. Eulália Coutinho Pereira

      Crónica maravilhosa. Mergulhar na magia da noite. Desvendar mistérios. Revolver memórias. Luz no escuro em contraste com quem vive escuridão. A solidão de quem vive com pesadas vendas. Trocadilhos como diz a atenta Isaurinda.
      A luz que emana destes textos não permite olhos vendado!
      Obrigada meu amigo. Um abraço.

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Que bela leitura fizeste no meio do escuro. Que bom. Não, nunca engano a Isaurinda. Abraço

  6. Madalena Pereira

    Um ensaio sobre a cegueira? Muito BOM este texto! Obrigada, tenha uma boa noite, meu amigo. Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Madalena, a resposta ao seu comentário está fora do sítio. Desculpe. Abraço

  7. Cristina Ferreira

    Querido Jorge,
    Mais uma vez estou de acordo com a nossa Isaurinda . Muito nos dizes acerca da noite, E em forma de “trocadilhos”. Uma crónica que muito apela à nossa imaginação. Creio que na noite, tudo é mais intenso e verdadeiro. A inquietude entre o pensamento e o sono, dá lugar à inspiração, ao sonho, à magia. Por isso, para mim, a noite, é pura.
    “Há quem viva na escuridão”, mas o que tu, querido amigo nos ofereces, é o que vem de dentro de ti – Vida! Ao ler-te , respiramos Luz. Tens o Dom de iluminar os nossos corações.
    Obrigada por tão profunda e bela suavidade de palavras.
    Abraço de veludo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Que leitura e comentário tão belos. Estou muito grato pelas tuas palavras. Abraço

  8. Célia M Cavaco

    Excelente texto,cabe a cada um de nós fazer o diagnóstico literário.Cada interpretação do mesmo tem a sensibilidade que lhe cabe à leitura do mesmo.
    Por mim,quase que diria vislumbrar uma qualquer rua ou bairro de vidas e obras clandestinas tal como as vidas das palavras que se deram a ler neste teu escrevinhar. Como é prazeiroso ler e ter o prazer de ler a curta passagem da sábia Isaurinda ainda que nos finais…Mulher sábia essa tua amiga. Aquele abraço meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Tão sábia a maneira como me leste e comentaste. Tão bom ler as tuas palavras. Abraço

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