Crónica de Jorge C Ferreira | Insónias

Insónias
por Jorge Ferreira

 

Quando as noites são cabeleiras despenteadas pelos maus pressentimentos. A vida a ser vivida de noite. Logo agora, que os “néons” estão apagados e as ruas vazias. Noites perdidas ou noites encontradas? Nunca chegaremos a saber.

Vamos ficando diferentes com a idade. As eternas preocupações que não nos largam vão variando. Começamos a ter pessoas que se preocupam connosco. Uma viragem na vida que aceitamos. Não temos outro remédio.

As mazelas, as dores, as perdidas euforias. Um texto triste. Um livro para pensar e a vida a avançar. O ser apontado, algumas vezes, como razão da crise.

«Há demasiados velhos.»

Disse, no outro dia, uma velha recauchutada.

Dizem-me que há gangsters a fazer comentários nas televisões. Eu não quero acreditar, mas acontecem coisas que me fazem pensar. Esta minha mania de pensar nas coisas que vão acontecendo! Alguém me aconselharia a estar sossegado e ser mero espectador. – Já não tens idade para isso. – Vive da tua reforma e fica agradecido. São estas frases fatais que já ouvi muitas vezes, não ditas para mim. Mas ouvidas a voar pelos espaços públicos. Essas frases entroncam naquele princípio salazarista: “A minha política é o trabalho.”

Outra vez o Novo Banco. Senhores de um contrato leonino nas mãos. Vão fazendo o que sabem fazer os fundos abutres. Um tipo que parava à esquina de um bairro de gente trabalhadora e alguns malandros diria: – Anda tudo no gamanço. E não é que tinha alguma razão! Começo a estar farto deste banco, destes falsos banqueiros, desta gentinha. Acabo sempre a pagar e vocês também.

-É a vida.

Diz um velho do Restelo.

Vou começar a descer a minha rua todas as noites. A sentar-me num muro virado para o mar e esperar que o nevoeiro se levante e apareça D. Sebastião.  Vou levar um “tijolo” que ainda tenho em casa e um CD com a “Lenda de El Rei D. Sebastião”, sei que me vão chamar louco. Ou quem sabe, arranjarei companheiros de luta.

Sabem o que vos digo? Estamos a endoidar. Se isto se tornar viral, teremos um “Novo Ensaio Sobre a Cegueira” e talvez um prémio Nobel. Vamos ter de construir outra “Casa dos Bicos” e tomar conta de outra ilha em Espanha. Vamos, então, ser de novo grandes e derrubar todos os moinhos de vento que nos atrapalham a vida.

Vem aí uma vida dura. Não acreditem nestas baboseiras que eu teimo em dizer. Os robots já constroem novos robots. Vêm aí exércitos sem sentimentos. Não sei quanto tempo falta para chegarem os androides do “Blade Runner”. É coisa em que não interessa investir.

O teletrabalho, as aulas não presenciais, tudo isto é um retrocesso na raça humana. Vamos deixar de estar juntos, de combinar os almoços, de falar dos problemas que condicionam a nossa forma de vida. As crianças vão começar, de pequenas, a ficarem sós, a não conhecerem a diferença. Lutem contra isto por favor. Não se deixem enredar.

Podem dizer-me que temos as redes sociais, falar-me das novas tecnologias, podem-me argumentar com tudo. Mas, para mim, conversar, olhos nos olhos, e abraçar o outro é uma coisa inestimável.

«Podes contar comigo, desde que não me obrigues a ir esperar esse D. Sebastião.”

Fala de Isaurinda.

«Eu sei, quanto ao D. Sebastião era brincadeira. Conto sempre contigo.»

Respondo.

«Contigo nunca se sabe. Já te vi fazer cada uma.»

De novo Isaurinda e vai, o lenço a dizer adeus.

Jorge C Ferreira Agosto/2020(261)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Insónias”

  1. Isabel Maria Pinto Soares Torres

    Triste, mas realista. Cru, mas belo.

    1. Jorge C Ferreira

      Isabel, muito obrigado. Buscar sempre o belo. Abraço

  2. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Este covid que nos leva ao isolamento com transtornos de pânico; a nossa vida a ser feita de pé ante pé, num comportamento de larápio a tentar iludir a câmara de vigilância que não existe! É o terror da própria sombra de um corpo que não está em lado nenhum! Tempo perdido a jogar à defesa sem um adversário à vista. É como um amor não correspondido: tempo perdido!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Para que Mundo nos querem levar? Resistir. Abraço

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Genial como sempre. Tudo dito meu amigo.
    As noites e os dias longos.
    Os anos velozes. Passamos a a ser de risco e todos se preocupam. Os netos dão-nos a mão para ajudar.
    Pensamos muito. Ontem era o sonho. Hoje é o pesadelo.
    As notícias não ajudam. Os loucos continuam a ser os donos do mundo.
    Faz falta o abraço, o olhar, o toque.
    Obrigada meu amigo. É bom lê-lo.
    Um grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Eulália, obrigado. Tudo tão bem escrito. Muito obrigado. Abraço

  4. Branca Maria Ruas

    Não nos podemos deixar enredar, não!
    Não podemos endoidar. Precisamos combater as insónias. O medo. O isolamento.
    Não podemos abdicar de falar olhos nos olhos. Não podemos prescindir de afectos.
    Um abraço apertado.

    1. Jorge C Ferreira

      Maria, obrigado. Temos de contrariar este caminho. Resistir. Grande abraço

  5. Cristina Ferreira

    Gostei muito.
    Grata
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Cristina, muito obrigado. Abraço

  6. Teles Ivone Teles

    Meu querido amigo, subscreveria o teu texto se tivesse o teu talento. Se estivesse perto de ti e da tua Isabel acho que vos não largava. Ando muito pessimista. Quem me dá ânimo é a minha Bea, mesmo sem saber. O meu coração fica sossegado quando me telefona. Se eu tiver um bocadinho e tivesse asas ia ter convosco. Um dia destes, quem sabe?, talvez possamos ” trocar umas ideias sobre uns assuntos ” como diria o Mário de Carvalho. Beijinhos muito ternos <3 <3

    1. Jorge C Ferreira

      Ivone, minha querida amiga/irmã. Que bom ler o tru comentário. Aparece quando te apetecer. Abraço enorme.

  7. Cecília Vicente

    Meu amigo,da tua crónica assusta-me as tuas verdades,bem que gostaria que fosse ficção,mas a realidade é demasiado grande,gigante até. O tal vírus veio,creio até para ficar aproveitando-se da “doideira” das festas e das férias onde tudo anda alienado como se nada fosse,eu sei,sei que a economia tem de avançar,mas à custa de quê? Não digas,sei que vais falar e eu cedo a ouvir,nego-me a ouvir que o turismo é demasiado importante,que o tráfego aéreo traz vantagens mas,ando assustada,é um direito que me assiste. Bem que gostaria de uma vez na vida fazer papel de avestruz,vendo bem,e porque me conheço sou muito,muito…nada,não sou nada neste mundo de doidos,eu mesma endoideci com tanto e tanta roubalheira; Queria ser Robin dos Bosques,mas de que adiantaria,entre Novo e Velho,Salgado e companhia Lda,seria uma cruzada inglória. Pobre de mim! Valha-me a minha ainda ingenuidade em querer acreditar no impossível. Breve,creio chegar o Natal,vou acreditar… Como sempre meu querido amigo,deixas-me a pensar e repensar em como e onde pudemos ser heróis… Abraço-te!

    1. Maria Rosa Matos

      Combater quem nos atormenta em vez de nos respeitar e abraçar .
      Abraços

      1. Jorge C Ferreira

        Maria Rosa. Obrigado, minha amiga. Resistir sempre. Abraço

    2. Jorge C Ferreira

      Cecília, monha amiga. Acho que querem mudar o mundo. Não será para melhor. Temos de resistir. Obrigado. Abraço Grande

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