Crónica de Jorge C Ferreira | Fim do Ano

Crónica de Jorge C Ferreira

Fim do Ano

Mais um dia ou menos um dia? O eterno dilema. Uma dúvida que me atormenta desde que era muito jovem. Sempre vivi com essas dúvidas que se vão perpetuando no tempo. Quando se aproxima o fim do mês a dúvida aumenta. No fim do ano torna-se quase intolerável. Mais um ano ou menos um ano?

Assim tenho ultrapassado os tempos. Assim tenho aturado esses contadores de tempo de dentes afiados e vestidos de negro. Gente nascida de ventres desconhecidos, gente sem nome, gente com quem não simpatizo. Contagens que detesto. Muitas vezes não ligo. Outras, fico nervoso. Uma bipolaridade que enerva. Não sou capaz de olhar para um calendário. Raramente sei em que dia estamos. Raramente sei quem sou.

Agora sei que estou no tempo de diminuir tudo. É sempre menos um dia, menos um mês, menos um ano. Estou na descida de um plano inclinado e nunca me deixam ver o fim. Quer maldade! Sei que tudo um dia acaba e nós acabamos. Acabaram-se as saudades e as paixões. Apagam-se as estrelas.

Sei que vem aí outro ano. Sei dos que fazem planos de mudarem a vida e sei que no dia seguinte tudo continua na mesma. No ano que chega tudo se vai repetir. O mesmo horário, as mesmas rotinas, o dinheiro, e o ter. Poucos são os que conseguem mudar de vida e ajudar a mudar o mundo. Estamos na fonteira de algo acontecer. Um mundo que tem de mudar. Um mudar que tem de suceder. No entanto, se nós não mudarmos nada muda.

Quem somos? Que fazemos? Por onde andamos. Quem seremos? Que faremos? Por onde andaremos? Valerá a pena fazermos projectos? Valerá a pena alguma coisa? Valerá a pena celebrar o novo Ano? As estrelas hoje estão lá. Exuberantes de luz e nos seus desenhos geométricos. Luzes nossas, luzes deles, luzes de todos. Sabemos que o Universo continua a expandir-se. Sabemos que vemos estrelas que já morreram e, no entanto, sabemos tão pouco de nós.

As farmácias não param de vender ansiolíticos. Os psiquiatras e os psicanalistas têm cada vez mais freguesia. Vive-se cada vez mais depressa. As coisas são cada vez mais descartáveis. A vida a desfazer-se em laçarotes e fitas coloridas. Os embrulhos desfeitos. O sentido da vida a perder valor. E eu teimo em continuar a pensar: o que ando aqui a fazer?

Quantas mais noites vou adormecer tarde a pensar no sentido que terá o dia de amanhã. Depois alguma alegria no acordar e pensar que talvez apareça alguém que diga alguma coisa de novo que nos preencha a vida. A vida, esse espaço de tempo limitado que nos emprestaram ainda não sabemos bem porquê. Muitos desejados e frutos do amor, outros fortuitos e desprezados. Logo aí a vida a dividir tudo. Logo aí a glória ou a desilusão.

Tanta coisa a acontecer. Tanta coisa por aprender. Uma vida a naufragar. Um corpo a boiar numa piscina sem fim. Águas tão diferentes e destinos tão iguais. A força e o desejo. Umas asas poisadas na esquina de um telhado e alguém que não sabe voar. Uma mulher que fala de destinos e adivinha futuros. O futuro que não existe. As balelas escritas em falsas cartas e um animal que dizem que nos pertence e teima em ser independente. Um amor virado do avesso e uma saia sem bainha. Os pontos de artistas consagradas expostos numa toalha de mesa que se usa uma vez por ano. Que desenhos! Que cores! Que sabores! Quantas luas cheias em cada bordado? Quantas noites sem dormir? Quantos dias a sonhar?

Um bom Ano! São os meus desejos e da Isaurinda.

Jorge C Ferreira(UK) Dezembro/2019(232)

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.


 

Partilhe o Artigo

Leia também

12 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Fim do Ano”

  1. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Assim é a vida; assim somos nós, os fazemos a vida acontecer.
    Correm rios de memórias e tudo é igual ao passado. Há sempre um abraço por dar, um desejo vaticinado para bem de todos, para libertar a “cruz” que supostamente ficou para trás. Do mesmo modo ou de outro ela vai-nos acompanhar por imperativo dos nossos descuidados hábitos.
    Somos o fruto da nossa cultura, irreverência, tolerância, bem ou mal-estar das nossas crenças.
    Um Bom Ano Novo de 2020, para todos!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Que bom o seu comentário. Os seres imperfeitos que somos. Ainda bem que o somos, digo eu. Abraço

  2. Teles Ivone Teles

    Amanhã, no dia 31, quando forem 24 horas, o que corresponde às 0 horas do dia 1 de um outro ano, festeja-se a chegada deste. Nada retiro, ou acrescento ao que escreveste. Lúcido, fazes a pergunta mais lógica: mais um ano, ou menos um ano? Para mim, seguramente, a linha é descendente. Mas não o digo com a magia fantástica das tuas palavras. Por isso, meu querido amigo, vou continuar, enquanto não sou cinza e pó, a fazer minhas as palavras, TUAS.. As mesmas interrogações, as mesmas inquietações. E depois? Depois mais nada. Seremos vivos enquanto se lembrarem de nós. Um dia, estaremos totalmente esquecidos.
    Desculpa este texto querido Jorge. A verdade é que agora, neste instante, te desejo e à Isaurinda um Novo Ano de Saúde e PAZ. Os desejos vão embrulhados em estrelas brilhantes e doces. Encontra-as e façam com elas um ” fogo de artifício” sobre o mar. São vossas, são tuas. Beijinhos e ternura. Até para o ano.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha querida Amiga/Irmã. Sabes, só espero que digam que eu era um tipo porreiro. Só peço saúde para todos, porque o resto a gente arranja. Abraço.

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Maravilhosa forma de escrever!
    Faço há anos a mesma pergunta. Mais um ano ou menos um ano?
    A verdade é que a resposta é ambígua. Penso cada vez mais que é menos um ano. Conto sim cada momento. Cada momento é precioso. Valorizo cada vez mais pequenos nadas.
    Obrigada amigo pela grandeza dos seus textos e das suas mensagens.
    Um bom Ano para si para a insubstituível Isaurinda.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. O seu comentário, belíssimo, indica que é uma pessoa que pensa, que se interroga. É tão bom encontrar gente assim. Se todos fôssemos assim o mundo seria diferente. Abraço

  4. Regina Conde

    A questão que permanece. Será mais ou menos um ano? Tenho para mim que é menos um ano. No entanto, assim renascemos todos os dias até que chegue um dia diferente. Acredito no que me faz renascer. As várias formas de sentir o amor. As cores e a luz que necessitamos todos. A Isaurinda tem tudo isso para te dar diariamente e tu partilhas connosco. Bom Ano. O abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Peço-te uma coisa. Continua sempre a interrogar-te. Nunca dês nenhuma resposta como definitiva. Mesmo quando eu não estiver cá, continua a interrogar-me. Abraço

  5. Cecília Vicente

    A esperança vem com o Novo Ano apesar do velho levar tempo a despegar-se parecendo o cabo das tormentas que leva tempo a ultrapassar. Bom Ano meu amigo.Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Afinal outro dia. Um novo calendário. Esse nicho de mercado que subsiste. Força para todos os novos dias. Abraço

  6. Cristina Ferreira

    Era assim que eu escreveria se fosse mágica e poetisa, porque dizes tudo o que sinto, da forma mais poeticamente serena. Por isso aguardo semanalmente por estas palavras tão belas e sentidas.
    Um bom Ano é também o que vos desejo (para ti e para a Isaurinda)
    Bem Hajas
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Sabefora de criar novos anos em actos de pura magia. Cá espero estar para a semana. Abraço.

Comments are closed.