Crónica de Jorge C Ferreira | Fim de Ano

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Fim de Ano

Ano vai. Ano vem. Desejos morrem. Desejos nascem. A vida a correr. O plano inclinado. O fim da estrada e a estrada sem fim. Fecham-se portas. Abrem-se janelas. O caminho e os tropeções. As curvas apertadas. Quanto jogo de cintura.

O mapa das dores. O riso e o saber rir. A gargalhada que nos alegra. Tentar aprender o caminho da alegria. Os pequenos projectos. O saber saborear cada dia. A festa do novo dia. Caminhar de novo. Ir com todos e com ninguém. Não ter medo de calcorrear o tempo.

Mais um ano. Menos um ano. Façam as contas como lhes aprouver. Façam o favor de viver. Para quê ter medo do inesperado? O que aparece de súbita maneira é, por vezes, de uma beleza única.

A meia-noite e o nosso meio-dia. As badaladas da ilusão. As praças do mundo cheias de luz, cheias de gente. A contagem decrescente para a idade maior. A maior agonia. As terras sem luz. As gentes sem ano. O ano minguante. A fome que mata a vontade. Os foguetes. As canas e o ruído. Os morteiros. As lágrimas que caem. Um homem que apanha as canas. Os bombeiros em alerta. Bebe-se alguma vida e muita desgraça. O rancho melhorado.

Há quem acorde no dia seguinte e não se lembre de nada. Nem uma vaga ideia lhe povoa o cérebro. «É para a desgraça, é para a desgraça.» A frase que mais se ouviu. «Bebidas maradas.» Diz alguém à cabeceira do quase moribundo. No outro lado no mundo onde a luz é a das estrelas, já, há muito, alguém caminha em busca de água. Um caminho de todos os dias de pé descalço.

A azáfama dos guarda-roupa. Muita “pomada”. Muito “betume”. Muita máscara. Muita laca. Muito gel. Muita operação plástica. A vida presa por cordéis. A música do costume. A diversão obrigatória. A terra cospe fogo em alguns sítios do mundo. A maltosa vai-se safando. Os financeiros a quem pagamos os desfalques, bebem champagne francês. As senhoras dos fulanos compõem os últimos retoques, escolhem as caras jóias para a ocasião. A “festança” continua. Festas que duram o ano inteiro! A falta de vergonha que já cansa!

Limpam-se os restos das festas. Há de tudo naquele chão sem gente. Tudo o que foi expulso, sem remorso, pela desbragada multidão. Só à mangueirada. Só com máscara. Encontram-se alguns sinais de desgosto, lágrimas, pestanas postiças arrancadas, um olho de vidro e um anel de noivado. Um véu de noiva a esvoaçar. A noiva perdida e sem memória. O noivo no altar. Está quase a chegar o Santo António.

No dia seguinte fazem-se contas à vida ou à morte. Os gatos pingados não descansam. Os cemitérios abrem todos os dias. O fogo é fátuo. O silêncio de morte.

Falemos de outras coisas, do primeiro bebé do ano. Do primeiro grito de liberdade. Do primeiro choro. Do primeiro beijo. Que nome vamos pôr à criança? João Maria se for rapaz, Maria João se for menina. «Não se discute mais.» Voz do futuro padrinho.

Esta roda contínua a que chamamos vida!

Tenham um bom ano. Abraços.

«Tu lembras-te de cada coisa. O que foste buscar para falar da passagem de ano!»

Voz de Isaurinda.

«Tinha de falar da vida, não achas?»

Respondo.

«O que eu acho é que não tens emenda!»

Responde Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Dezembro/2018(190)  

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15 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Fim de Ano”

  1. Ana de Sousa

    Foi a primeira crónica que li, sua … e adorei … tão, tão real … Obrigada!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana. Seja bem-vinda. Que bom estar por aqui. Um abraço.

  2. Eulália Pereira Coutinho

    Falar da vida. Falar das muitas vidas. Rir e chorar. Aqui e além. Ricos e pobres. Poderosos ou não. Para todos um novo ano.
    Obrigada por estas crónicas cheias de saber. Únicas
    Feliz 2019.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eugénia. O saber é vosso, do modo como fazem o favor de ler o que escrevinho. Abraço

      1. Jorge C Ferreira

        Desculpe, obrigado Eulália.

  3. Cristina Ferreira

    E não tens emenda mesmo! Por isso és único. Que prazer iniciar o novo ano com a tua escrita. Obrigada. Feliz 2019.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Espero nunca ter emenda. Abraço

      1. Cristina Ferreira

        Por isso a nossa tão grande admiração por ti. Abra

        1. Jorge C Ferreira

          Abraço.

  4. Ivone Teles

    Meu querido amigo Jorge, cronista de acontecimentos, sem perder a capacidade de os observar à luz das realidades mais alegres, ou mais tristes, sem perder as duas faces do mundo neste planeta a que chamamos Terra. Mas ” terra ” devia ser sempre um caminho de Esperança donde brotasse o essencial na vida de Todos. Mas não é, querido amigo/ irmão, tal como dizes. Estamos num mundo de muitos mundos. Cada vez mais desequilibrado, a uns sobra a ” soberba “( atitude mais feia ) e outros carecem até do pó dos caminhos, porque estes são só de pedras. Obrigada querido Jorge. Beijinhos <3 <3

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha amiga/irmã. Tento fazer o que dizes. Tento caminhar contigo. Caminharemos. Abraço

  5. Regina Conde

    Precioso texto. Tão bom o teu diálogo com a Isaurinda. Que nunca tenhas emenda, é a tua enorme capacidade de escreveres “esta ilusão passageira”. Abraço enorme Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Quanto a isso de não ter emenda, fica prometido. Abraço

  6. Célia M Cavaco

    Tanta vida que fez rodopio. A chegar,um novo Ano,para seguirmos em frente.Tenta-se com as passas deixar tudo para trás.A folia é de cristal,a princesa voltará a ser gata borralheira,tudo será normal no dia seguinte…
    Um 2019 cheio de esperança.Bom Ano Novo meu muito amigo.Abraço da sempre amiga Célia Maria

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Que bom ter de novo aqui os teus belos comentários. Bem-vinda minha amiga. Abraço

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