Crónica de Jorge C Ferreira | As vacinas e as vácinas

As vacinas e as vácinas
por Jorge C Ferreira

 

Fui pedir um café e um queque ao postigo. Depois sentei-me num muro a deglutir desejos. Estava sol e os raios dardejavam a cara, o cabelo e a barba. Estou ainda com ar de homem encontrado, com o cabelo comprido e a barba por desfazer, após ter estado metido numa caverna. Sou a figura desenhada da pandemia. Passo por pessoas que me falam e eu respondo. Tenho de perguntar quem são. As pessoas estão diferentes e as máscaras não ajudam.

Na farmácia a tensão estava um pouco alta. Andamos todos nervosos. Uma alteração de sentidos que por vezes incomoda. Muito tempo em casa. Muito tempo a desfolhar pensamentos. Agora tenho lido. Valha-me isso! Também comprei dois medicamentos daqueles que receitam aos velhos e aos loucos. Coisas para nos irem atormentando até ao fim da vida. Coisas que não curam. Coisas para nos manterem na estatística dos vivos. Um bom negócio! Vou para casa.

O cabeleireiro, ao lado da minha casa, está aberto. A minha pedicure disponível. Não perco tempo e arranjo os pés. Uma nova leveza se apodera do meu corpo crescido. Que fazer com estes pés? Um andar mais leve leva-me até ao rés-do-chão. Acho que era altura de ir ao céu. Fico-me por aqui entre as nossas coisas. A Isabel está a falar com uma Amiga que quer o meu livro de poesia. Gostou muito do meu livro anterior. Fico contente.

Comi uns morangos, um sumo de frutos vermelhos e falei um pouco pelo “WhatsApp” da Isabel com outra Amiga nossa que já esteve com covid e continua no Algarve. Lá estava ao sol no terraço da casa. Faço queixas, digo coisas que ela nunca acredita e está quase na hora da sesta.

Esta vida de reformados dá cabo de nós!

Na televisão falam de vacinas e de vácinas. Já não sei como dizer. Sei, isso sim, que está aí uma grande confusão montada. São muitas as vacinas que conhecemos, e temos por cá:

Pfizer;

Johnson & Johnson;

Moderna;

Oxford, AstraZeneca

Tanta vacina e tão pouca gente vacinada. Ainda nem os maiores de 80 estão todos vacinados. Eu com 72 e a Isabel com 69 ainda não fomos chamados. Seremos? Como não temos médico de família e não somos utilizadores do Centro de Saúde, não sei não.

Apareceram três vultos numa mesa. Um homem do Infarmed, a Directora Geral de Saúde e o Almirante dos submarinos em camuflado. Afinal há dúvidas sobre uma das vacinas, a da AstraZeneca. Fica congelada a sua toma. Telefonei para a minha sobrinha inglesa a descompô-la sobre o trabalho da Universidade de Oxford. Ela, que é de Bristol e anda numa Universidade em Londres (Greenwich), diz-me que não tem nada a ver com isso.

Ressalva: três dias depois as três mesmas pessoas vêm dizer que afinal a tal vacina é segura. Vamos retomar o plano e pronto. Estas informações devem ser cuidadas. Não se deve acrescentar medo ao medo, dúvidas às já muitas incertezas. Vamos esperar para ver.

O cerco que se mantém apesar deste desconfinamento fatiado. A cabeça, por vezes, começa a ficar oca. A vontade enorme de ser outra coisa. As pastilhas dos loucos cada vez com mais saída. Há bichas para as farmácias. Quando há cura para isto? Diz-se que criaram para aí umas pastilhas, acho que o processo ainda está atrasado. Já era tempo.

Estes dias enganados. Estes dias de escrita descomplicada para descomplicar a vida.

«Assim que o homem disse que se podia ir beber café, aí foram vocês. Parecem uns garotos.»

Fala de Isaurinda.

«Estávamos a sentir vontade de beber um café a sério. Fomos com todos os cuidados.»

Respondo.

«Olha que isto não está nada bom. Anda para aí tudo feito doidinho. Nunca fiando.»

De novo Isaurinda e vai, as mãos vazias de quem já duvida de tudo.

Jorge C Ferreira Março/2021(294)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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15 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | As vacinas e as vácinas”

  1. Isabel Torres

    Mais uma bela crónica sobre um quotidiiano e um estar autobiográfico. As inquietações, o sofrimento. O aprisionamento. A necessidade de bengalas medicamentosas: para possibilitar estar vivo. Para sobreviver. Existem ” loucos”? Que raio de coisa é a loucura?

  2. Jorge C Ferreira

    Obrigado Ivone, minhha querida Amiga/Irmã. É como dizes, já nos escapa a contagem do tempo. Há negócios que nos dão vómitos. Sei que posso falar por ti. Já cá andamos há algum tempo. Sabemos como se amanham as coisas. Aguardemos. Beijinhos

  3. Mena Geraldes

    Jorge.
    Habituada ao teu estilo tão peculiar de escrita, entrei nesse mundo das vácinas que continua a deixar-nos desconfiados e introspectivos. Levantam-se as questões.
    Os argumentos dos prós e contras acumulam-se e não há vácina que nos valhe…
    Sim, porque afinal, a vácinação ía ser rápida e eficaz mas alguém se enganou nas contas e continuamos, paciente ou impacientemente, aguardando.
    De nada nos servem queixumes e lamúrias.
    Talvez, quem sabe, ainda apareça uma portuguesa.
    Porque o que é nacional é que é bom!
    Adorei o teu texto. Como é habitual.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Temos de aguardar. Se tivermos dinheiro podemos ir ao Dubai levar a vacina. Para quando algo que combata eficazmente a doença. O negócio das vacinas é nojento. Abraço

  4. maria fernanda morais aires gonçalves

    Um homem ao Sol sentado num muro de desejos!
    Que bem começa esta tua crónica.
    O Tempo em que se passa é tempo de pandemia. Mas, olha que novidade! já me habituei. A vida mudou completamente. Desde as casas. Onde habitamos, o que fazemos, o que comemos, a minha alimentação mudou e de que maneira. Eu já não cozinhava praticamente. Aqui em Lisboa ia aqui a um pequeno restaurante almoçar por volta das 14Horas. Agora servem um take-away. Não é a mesma coisa.Não janto. Como cereais, fruta, yogurtes, torradas, leite, lancho e janto o mesmo. Deixei de gostar de comer.
    Estou viciada em livros. Compro às escondidas, On-line, pago-os com o cartão. Vou ter que me deixar disto. Não digas a ninguém é segredo.
    Tomo as pastilhas todas a horas. O doutor passa as receitas cá em casa e o meu passeio preferido é ir à farmácia quando estão quase no fim.É uma vida divertida não é?
    A netflix está uma trampa! já vi tudo o que interessava. Programo viagens que não faço e até telefono para hotéis para saber se estão a funcionar.
    Aquela viagem que te falei a Bragança é a sério. Há avião a partir de Tires. Há Hoteis abertos na cidade.
    Só estou à espera da vacina. Se calhar lá para Abril fim de Abril talvez esteja vacinada.
    Tenho que ir. Olha meu amigo não sei se a minha resposta está fora do contexto mas eu já nem estou a ver bem, já é tarde, daqui a pouco toca o despertador. O doutor vai trabalhar. Ainda ouço um sermão. Beijinho à Isabel não a acordes e um abanão à Isaurinda se é que essa existe mesmo para ti aquele abraço e não te encostes muito ao muro, podem pensar que estás à espera de alguma miúda!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Tão bom o que escreveste, que maravilha. Pois é, minha Amiga, isto está tudo mudado. Já nem nos conhecemos por vezes. Grato por tudo. Abraço enorme.

  5. Eulália Pereira Coutinho

    Que excelente crónica. A idade tornou-se tão pesada.
    O confinamento vai-se fazendo devagarinho. A saúde vai ficando pelo caminho. O balcão deu lugar ao pstigo. Que tempos estes, meu amigo.
    Enquanto isso, descobre-se que todas as vacinas são eficazes. É só saber como são distribuídas. Os interesses económicos comandam o mundo. Os interesses pessoais vão decidindo quem é prioritário..
    Vamos esperando que alguém decida quando chega a nossa vez.
    Até lá vamos procurando os sorrisos por trás da máscara. Vamos procurando os abraços por WhatsApp. Vamos comprando ao postigo.
    Vamos esperar que quem manda, decida bem.
    Obrigada meu amigo, por estar desse lado.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Tem tanta razão no que escreve. Quanto mais tempo vamos suportar isto? Os nojentos negócios das farmacêuticas! O postigo e tudo a fugir. As pessoas que não se conhecem. Tão bom estar aí. Abraço grande grande

  6. Maria Luiza Caetano Caetano

    Verdadeiro e actual, o Conto que hoje nos escreve, querido escritor. O conto das nossas vidas, num momento nada fácil.
    Quero acreditar na ciência. Mas que não fossem os homens dos números a imporém-ma.
    Já fiz a primeira dose da vacina. A Pfizer! Correu tudo bem e já vim com data marcada, para a segunda.
    Aguardo ansiosamente a Liberdade. Mas consciente dos limites. “Nunca fiando.” Palavras de Isaurinda.
    Obrigada, querido escritor. É tão esclarecedora a sua escrita, verdadeira e sábia, que hoje considerei que o que aqui nos deixa é um belíssimo, Conto ! Eu gostei muito. Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza, minha sábia Amiga. Que bom já ter tomada a primeira dose da vacina. A Isaurinda tem razão, mesmo depois da segunda dose é necessário ter cuidado. Todos estes negócios das farmacêuticas me deuxam mal disposto. Que bom estar aqui. Abraço imenso

  7. Cecília Vicente

    Que vida, que fado carregamos neste tempo desgovernado, vivemos numa espécie de gaiola dourada, rodeados de conforto desconfortável… Dias e horas inimagináveis, tempo e tempos que desconfinado torna-se uma maratona para regressar ao casulo, são os ponderados, depois há os que dizem ter perdido a liberdade e tudo vale, até correrem o risco de apanhar o que afirmam não existir. Por mim, que entendo, que a falta de liberdade como algo que me aprisiona a alma, o corpo e calar o que o coração grita, desentendo-me com a minha capacidade de entender, levando-me continuadamente d acreditar que só sei que nada sei… Tenho saudades de dar abraços, tenho saudades de mim, sinto falta de tudo e de nada, aprendi que muito pouco consegue arrancar um sorriso disfarçado. Tenho medos, dos meus medos consigo uma coragem que desconhecia, cedo, bem cedo vou por aí à procura de uma nesga de sol que brilha ainda as luzes se confundem com a primeira claridade. De vacinas e negócios escuros sinto que tudo torna-se um icebergue…Meu querido amigo, fica bem, aproveita esta nova forma de vida que quero acreditar seja temporária… Aquele abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Que belo texto escreveste. Andamos como que perdidos. Assim como se uma escuridão nos oprimisse. Procuramos o sol, a tal nesga como dizes, aos primeiros alvores da nanhã. É tão bom estares aqui. Abraço enorme

  8. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Há um grande descontrolo anímico na vida de cada um e que se reflete no coletivo.
    Há uma grande inapetência para dar atenção às coisas simples da vida sem procurar nelas a beleza da sua essência.
    Estamos a morrer de desânimo sem darmos por isso!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Estamos a passar por algo que nunca passámos antes. Vamos perdendo o qye nos era importante numa vertigem louca. Tentamos reagir e muitas vezes não temos forças. Temos de sobreviver. Abraço forte

  9. ivone Teles

    Uma Crónica feita ” à Confinamento “. Creio que andamos meio ” aluados “. Não acertamos nos dias, nas horas…..na VIDA. Nada anda bem, o mundo parece louco. E nós vamos atrás . Aqui em casa estamos já vacinados. Pertencemos à ” Unidade de Saúde ” e temos 85 e 82 anos.. Fomos chamados por uma mensagem. Falta a segunda dose não sabemos quando.. Como a Isaurinda, desconfio de tudo. Estou sempre ” de pé atrás “. Nalgumas coisa tenho razão, noutras não. Aguardo ” os próximos capítulos. Beijinhos .

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