Crónica de Jorge C Ferreira | As Horas

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As Horas

Os desacatos da vida. As viragens e os recuos. A procura e a inércia. Muitas horas paradas. As caras mudas vestidas de máscaras agonizantes. Uma pedrada num sítio ermo. A eterna busca do confronto. Um gesto de ternura e um raio de sol. O mar a brilhar de uma alegria frustrada. Faltam poucas horas para tudo ficar, de novo, plúmbeo. Vai tudo regressar aos contentores despejados de um barco fantasma. Sonâmbulos caminhantes preenchem os espaços.

Uma sala escura cheia de relógios com horas incertas. O barulho dos pêndulos a desacertarem os dias. Um incessante bater de corações adormecidos. Ouvem-se horas badaladas a todos os minutos. Custa-nos saber qual o relógio que dá horas, meias e quartos. São diferentes as badaladas. Músicas diferentes. Um louco tapa os ouvidos. Há um sábio que tenta acertar o tempo. Nada feito. Uma sala danada. Não sabemos se é dia ou noite. Está escuro e há uma mulher que chora. Será falta de amor? De onde vem aquele choro? Um grito!

Uma Mãe de água a esvaziar horas líquidas no ventre de uma terra ávida de carícias. Terra húmida, pisada, calcada. Terra berço de muita vida. Terra com tempo e sem horários. Terra imensa. Terra asilo. Terra fértil. A fertilidade que nos dá a vida. Gritam os filhos das águas revoltas pela sua liberdade. Erguem-se mulheres de seios desnudos. A revolta a ganhar força. Livres são as águas que correm pelas horas que não são contadas. Livres serão as mulheres que correm com as bandeiras na mão. Dizem que há horas com diferentes viveres.

Há sempre um relógio que teima em ficar mudo. Um relógio sem horas, nem minutos, nem segundos. Um relógio sem mostrador. Um relógio sem máquina. Uma imaterial desolação de quem se espera o inexplicável. Um relógio morto à nascença. As horas caídas num chão de rochas cinzentas, irregulares. Há um fulgor naquele sítio sem horas. Uma gruta onde abundam segredos muito antigos e estórias de encantar e desencantar. Há quem diga que por lá aparecem figuras etéreas. Figuras sem nome nem idade. Vidas cansadas que se evolaram em fumos sem cor. A água corre pelos veios das rochas e faz desenhos imprevisíveis. Ninguém sabe as horas nestas cavernas sem luz.

Procuramos a pirâmide das horas mortas. Procuramos a cripta. Partimos como salteadores de memórias antigas. Levamos água e comemos areia. Somos um deserto de horas caladas. Um calor que abrasa os desejos. Um suor que nos vai corroendo. Caminhamos. Somos as horas todas e viajamos sem elas. Sentimos o nada na busca da explicação do todo. As dunas não nos deixam ver o que nos espera. Enrolamos lenços à cabeça. Tapamos a cara. Os olhos queimados. Já não sabemos se o que avistamos é verdadeiro ou miragem. Voam seres que nunca tínhamos visto. Onde estaremos? Que horas são? A cripta é uma miragem.

É então que encontramos um eremita. Põe um pau na areia e diz-nos as horas. O dia, o mês, o ano, não sabe. «Já nasci há muito tempo». Diz-nos. Sobre as horas perdidas é peremptório: – São impossíveis de recuperar. Depois levanta-se e parte rumo ao incerto.

«Que raio de estória foste arranjar hoje! Essa tua mania de não gostares do tempo, ainda vai acabar mal.»

Fala de Isaurinda.

«Sabes que não gosto do tempo. É um tirano. Tenta coartar a nossa vida.»

Respondo.

«Tá bem, toma é nota do que te digo.»

De novo Isaurinda e vai, o relógio no pulso.

Jorge C Ferreira Março/2019(201)

 

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11 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | As Horas”

  1. Manuela Moniz

    São as horas a passar e o tempo a consumir-nos. Danado tempo esse, que ninguém o faz parar! Nem me apetece reflectir sobre ele. O destino marca a hora como diz a velha canção, Jorge!
    Obrigada. Beijo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Passear pela vida enquanto o tempo passa por nós. Abraço

  2. Madalena Pereira

    O tempo! Que bela reflexão, meu amigo. Nada há a acrescentar. Obrigada pela partilha. Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. O tempo eo sem-tempo. As horas perdidas. As horas encontradas. Abraço

  3. Cristina Ferreira

    Não foi uma viagem no tempo que fiz enquanto te lia, mas uma profunda reflexão ao tempo que tu nos obrigas-te a fazer. Viajei, divaguei , reflecti. Lembrei Antoine de Saint-Exupéry e o tempo que ele perdeu com a sua rosa, e por falar em principe, foi também no “teu príncipe da escrita” que passeei quando ele pergunta porque começa o tempo a acelerar quando finalmente começamos a dar-lhe valor? mas foi em Dali que permaneci mais tempo , sendo “o tempo” , precisamente o seu grande tema e onde encontrei muito em comum . Não sendo , de todo especialista em arte, deixo-me deslumbrar e seduzir pelo que cada um me transmite. Maravilhada cada vez mais com a tua arte e sabedoria. E a Isaurinda sábia lembra que o tempo é o mais sábio dos conselheiros . Brilhante.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Este tempo que me consome. Esta luta inglória. Os lábios pintados de horas. Abraço

      1. Cristina Ferreira

        Obrigada. Outro

  4. Teles Ivone Teles

    Um outro tempo cria um novo texto, reflexão de ” quantos tempos tem o tempo, quanto tempo o tempo tem?”.E é sobre um tempo que não é só claro, nem só escuro, mas também cinzento que o escritor se debruça. Porque não é alguém de linhas rectas, certinhas, iguais. É alguém que atravessa as horas da vida buscando a Liberdade, o Ser e o seu contrário. Porque há grades na vida de todos. Ele não se deixa cegar. Quer olhar e sentir. “Livres são as águas que correm pelas horas que não são contadas”. O tempo aprisiona quereres, esmaga desejos. Até os pássaros recolhem as asas e dormem. Há um eremita que afirma que as horas perdidas não se recuperarão, jamais. E o homem/ escritor não quer perder horas. E é então que tece as suas asas para voar acima das nuvens, onde se deita e adormeça, até que o tempo claro nasça e o aqueça para continuar a eterna procura. ” Quanto tempo tem o tempo, afinal ? A Isaurinda olha o relógio de pulso e é, então que diz: ” essa tua mania de não gostares do tempo ” Vê se te habituas, porque não voltarás atrás. Se regressares serás outro e o tempo terá as mesmas horas de que não gostas. O homem/ escritor, recomeça, então a eterna procura.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Que bem percorres as minhas horas. Que bem me entendes, minha amigpa/Irmã. Como escreves! Tão belo tudo o que dizes. Abraço

  5. Célia M Cavaco

    O tempo,as horas,o destino. Todos de mão dada,quanto muito,ainda o flagelo dos minutos e segundos que apressam as horas,as horas e o tempo tudo se resume a dias e a anos. O relógio da torre ainda é o mais amigo,leva-nos à infância. A Isaurinda lá terá as suas razões para chamar atenção,por mim, que não gostos de arbitrar o que quer que seja…hoje dou-lhe toda a razão.Não devemos evocar o tempo nem os seus aliados,há o destino a marcar a hora de todos nós…
    Abraço meu amigo!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Quantaps vezes me apeteceu subir à torre e mudar as horas de uma terra! Obrigado pela tua leitura e pelo teu comentário. Aqui juntos. Abraço

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