Crónica de Jorge C Ferreira | As festas

Jorge C Ferreira

 

As festas
por Jorge C Ferreira

 

Tanta festa. Tanta data marcada. Tantos eventos para acelerar o consumismo. Já não posso ouvir falar das vacinas e condicionar isso ao Natal. Se falamos de eleições e calendários eleitorais lá vem o Natal. Este Natal já é pagão. Já se esqueceu o presépio e o menino jesus. É mais uma festarola.

Foram muitos anos com o Natal em minha casa. Gente que vinha. Gente que entrava e saía. Duas famílias que se juntavam. Os mais velhos já foram todos. Os mais novos são muito crescidos. Resta um que está a crescer muito depressa. O Natal passou a ser, para mim, um cansaço. Já fomos para outro País, outra Cidade. A ceia a dois feita num restaurante de hotel. Um restaurante no ventre do bairro mais antigo da cidade. Quase uma gruta. Uma enorme calma e só nós. A vida lá fora numa corrida sem sentido. A cidade a ficar macia. Viemos para a rua. Vimos muita janela iluminada. Os vidros embaciados. Sombras que se movimentavam.

Já há muitos anos que decidimos não dar prendas um ao outro. Dar prendas a dias certos e horas marcadas. Somos, agora, de nos surpreendermos com um acto inesperado. Coisas simples a que damos cada vez mais importância. Só porque nos lembramos um do outro. Só porque sabemos do gosto de cada um. Vamo-nos aprendendo com os anos. Aprendemos enquanto conhecemos mundo. Somos os portos que nos abrigaram ao longo da vida. As ilhas perdidas do mundo onde chegámos. Somos os dias ganhos e perdidos. A passagem das horas. A latitude e a longitude. O gelo e o calor tórrido.

Claro que, muitas vezes, vem-nos alguma nostalgia daqueles festivos mas cansativos natais. As Avós, os Pais, os filhos pequenos, os irmãos e os sobrinhos. O bacalhau com todos. As couves. O peru. A doçaria vária. O bolo-rei. Lembram-se quando tinha fava e brinde? Os sonhos. Mas, acima de tudo, os beijos e os abraços. À meia-noite as prendas. Os mais pequenos à volta da lareira em busca do presente apetecido. No dia seguinte a festa continuava. A Isabel fazia bacalhau com natas e um esparregado à moda da minha Avó, o vinagre a temperar a vida. O almoço era sempre marcado para as três da tarde. Tudo se prolongava até à noite. As conversas dispersas, mais algumas visitas. Para um filho e neto único, como eu, era a oportunidade de desfrutar dos irmãos da Isabel e dos sobrinhos.

Já não vou mais para trás, para os meus Natais de todas as ilusões. Do sapatinho na chaminé. Naquele quinto andar onde se via a cidade com menos luzes. Esses tempos cinzentos em que a alegria parecia estar também condicionada. Também duas famílias ligadas. Os laços indestrutíveis de uma irmandade. Duas famílias que se juntaram para fazer frente à vida. Não vos conto da minha alegria ao receber um carrinho de corda. São coisas muito antigas. Sonhos meus de criança. O musgo e o azevinho. Poucas prendas e muito amor.

A mesa arranjada a rigor. O presépio a um canto da sala. As melhores toalhas. Os centros de mesa. O arroz-doce da minha Avó. Uma coisa única. O melhor queijo da serra que o meu Avô comprava sempre na mesma loja da baixa. Fui durante muito tempo a única criança da casa. Tanto mimo! Um gato chamado Pinóquio.  Um telhado de ver estrelas. Os sinos da Igreja. Ainda não havia televisão. Ainda não havia liberdade. O rádio das estações proibidas calado nessa noite.

«Tantos natais que nos trazes. Isso das prendas tens razão. São coisas a mais.»

Voz de Isaurinda.

«É isso. Lembras-te dos Natais na outra casa?»

Respondo.

«Se lembro… e tão bem! Eram cansativos, mas bonitos.»

De novo Isaurinda e vai, alguma saudade na mão fechada.

Jorge C Ferreira Novembro/2021(323)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Leia também

24 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | As festas”

  1. Ivone Maria Pessoa Teles

    Meu amigo Jorge, mas que beleza de Crónica. Tem tanta semelhança com a minha/nossa realidade. Assim, palavra a palavra, quase letra a letra. Quando começam a por os ” enfeites comerciais ” entro em agonia.”. Também não trocamos prendas e já há uns anos que ficamos em casa. Desde que os nossos queridos ” mais velhos ” partiram foi mais fácil tomar essa decisão. Agora somos nós os ” mais velhos ” e se pudesse ” exilava-me ” e só aparecia no outro ano. Quando vejo tanta gente tão esquecida por quase todos, tantas misérias sociais neste mundo em que só o ” material ” conta, volta a tristeza. A minha neta e companheiro perderam num mesmo tempo os avós maternos e estão muito tristes. Meu querido, prometo que me lembrarei de Vós, tu e Isabel, nessa hora em que se convencionou que um ” menino ” nasceu para um mundo que ” não existe “.. Dá um beijinho à Isaurinda. Estou contigo e os que amas e beijo-Vos com todo o carinho.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Nós somos assim. Quando nos encontrámos percebemo-nos de imediato. Temos as nossas vidas. Somos um abraço. Abraço enorme

  2. Cecília Vicente

    O Natal continuará a ser lembrado? De que forma? Os mais novos em muitos lares deixaram de conhecer os avós para lhes contarem outros natais do seu tempo, onde faltava tudo mas era natal, bastava-lhes olhar para o céu e ver a estrela para esquecerem o frio e a fome. Os tempos mudaram, os presentes e a gulodice fizeram e memórias recontadas, todos os anos faltava mais um mas o natal continuava em casa de cada um consoante as poses e a alegria de sonhar. Estamos em pré época de Natal, se todos ganharmos um abraço será o maior presente, este é e será um natal lembrado por muitos anos, afinal, o natal tem em todas épocas e séculos algo de novo. Tudo morre como tudo renasce, é cíclico, é o universo, somos nós em tempo de mudança, afinal, acreditar é possível, basta para isso um fraterno abraço, será a humanidade capaz de lembrar que o natal tem a haver com afectos? Abraço meu amigo!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Para mim o Natal é abraçar os Amigos. Passo por tudo em passo acelerado. Não reparo numa única iluminação. Um grande Abraço minha Amiga

  3. Coutinho Eulália Pereira

    Crónica maravilhosa. Memórias de uma vida, escritas de forma única.
    Casa cheia. Abraços e beijos entre o cheiro das filhós cobertas de açúcar e canela e o arranjo de azevinho.
    O bolo rei. A alegria e a inocência das crianças. O calor da fogueira e dos corações.
    Os anos vão passando, a saúde foge, o Natal é diferente, mas permanece o amor e o carinho da família e amigos.
    Tempos tão diferentes vivemos agora. O consumismo banalizou o Natal. As listas de prendas são intermináveis.. O apelo ao consumo, com meses de antecedência, faz esquecer que o Natal é em Dezembro. Dificil é esquecer os que não têm Natal, os que morrem á fome e aqueles a quem a guerra tudo tira .
    Obrigada Amigo, pela excelência da sua escrita e pela magnífica viagem às memórias de uma vida cheia de amor.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Já não me apanham no consumismo. Já falto a muitas festas. Abraçar um Amigo é a verdadeira festa. Neste de afectos interditos que festa vamos ter? Grande abraço.

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Sempre tão bonito o que escreve. Impossível não me repetir e dizer, que é um prazer lê-lo.
    A narrativa que faz sobre os Natais que já viveu, tantos e todos tão sentidos, lembrados com ternura.
    Tenho saudades de quando punha, o sapatinho na chaminé. Também fui a primeira criança na família. Lembro bem as deliciosas filhoses que minha avó tão bem fazia. E assim se cumpria a consoada .
    O encontro da família, como tão bem diz neste belo texto. Coisas que nunca esquecemos.
    Hoje não se vive o espírito de Natal. O consumismo sobrepõe-se a tudo. Até ao menino Jesus, que teve como berço uma manjedoura, aquecido pelo bafo de uma vaquinha e de um burro. Assim expliquei aos meus netos. Por eles eu faço tudo, até me esqueço que estou triste.
    Adorei o que li, querido escritor. Tão sábias as suas palavras, só fala assim do Natal, quem o viveu, no amor e na ternura de uma família. Grata sempre.
    Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Ai, o sapatinho na chaminé, o azevinho e o musgo. Musgo que íamos buscar aos muros da liberdade. Agora já não tenho festas. Tenho ternura e abraços para dar. Abraço enorme

  5. Filomena Maria de Assis Esperança Costa Geraldes

    Tantos foram os natais que nos trouxeste, como afirma a Isaurinda com essa sabedoria de quem já viveu muito, meu amigo Jorge.
    É sempre um regalo ler-te. Uma prenda inesperada. Uma insuspeita surpresa.
    Hoje tivemos no nosso canto de memórias os natais de outrora.
    De uma infância com cheirinho a arroz doce e a bolo rei. Da visão de um presépio com figurinhas de barro, montanhas feitas de areia e lagos de espelhos. Aqui e ali, tufos de musgo. Os três reis magos e uma cabana onde dormia o Jesus menino. Rodeado do bafo do amor.
    Tivemos o sapatinho na chaminé, os gritos de alegria, o desembrulhar dos presentes, junto ao pinheirinho e a festa da ternura.
    Tivemos o reencontro da família no último mês do ano e os mais longos e inteiros abraços. O estarmos juntos. Todos. Tantos!
    Os rostos afogueados, as iguarias sobre a mesa de toalha arrendada,
    as conversas até às tantas, o frio quebrado por um sentimento de união e fraternidade.
    A saudade mora aqui. No meu coração.
    Quase todos partiram. Restamos poucos. Com a pandemia, tão poucos. Dois. Eu e o filho.
    Por isso, hoje, apenas nos abraçamos. Sabemos que o natal é sempre que o homem quiser. Como diz a letra da canção que nunca esquecemos.
    Quanto a ti, meu escrivão, poeta sensível, emotivo e companheiro de escritas, vou deixar na tua pantufa, neste natal que se aproxima, um singelo bilhete com uma só palavra. Gratidão!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Que bom teres trazido a história de Jesus. No meu tempo de criança era ao menino Jesus que escrevíamos a pedir os parcos brinquedos que recebíamos. Era para ele que se colocava o sapatinho na chaminé. Hoje não gosto deste tempo. Dou-te abraços e ternura.

  6. António Feliciano Pereira

    É difícil ser diferente em qualquer latitude onde os sentimentos comungam para o mesmo fim.
    Está tudo no texto, a alma, a mesa posta, o perú, os doces e as prendas abertas no dia seguinte.
    São retratos de cada época, repetidos com a originalidade de novos brinquedos.
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Sim. E o que os tempos mudaram. Tantas meias-noites. Tanta noite por festejar. Abraço-o meu Amigo.

  7. Isabel Soares

    Uma crónica em duas mãos,uma que desvela o Natal como festas. E neste tempo,festas de consumismo e secundarizando a situação endémica do país. Lembremo-nos da mortandade dos primeiros meses deste ano.Também os debtes políticos e as eleições a reboque do Natal. É triste. Entre as pessoas e os votos estes ganham. Não os consigo ouvir mais. Não quero ou não consigo compreender que as decisões políticas se sobreponham à vida humana. (Continue Jorge a revelar estas insanidades)
    A outra mão revela recordações de u.m tempo passado e um presente. Apesar do cansaço,denota alegria em ambas as famílias . Os beijos,o convívio, as prendas e o calor humano a transbordar,nesses dias de festas. Recordações marcadas na memória e na alma. Boas.E agora a calma e a tranquilidade na vivência dessa data,. Revelando uma opção . O estar em paz evitando a turbulência e o cansaço.
    Uma crónica autobiográfica e singela
    Não tenho memórias positivas do tempo de Natal. Festas nunca tive,nem na infância nem na adolescência;depois foi outra história. Mas sempre vividas com nostalgia tensão e tristeza disfarçadas. Por isso,também cansaço. Muito cansaço. O alívio quando terminavam. E hoje é outra narrativa,mas, mais uma vez cansaço.
    Uma crónica bonita. E sempre com os sentimentos à “flor da pele”,bem como um registo lúcido, sobre as realidades sociopolíticas e individuais. Entrega-se e revela-se nas crónicas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Como me lê bem, estou muito grato. Vamos viver os afectos. Vamos amar o outro. Vamo-nos abraçar. Eu abraço-a

      1. Isabel Torres

        Obrigada! Abraço

  8. José Luís Outono

    Depois de ler, perdoa-me … senti-me muito igual nas tuas reflexões do ontem, do hoje e dos tempos virulentos.
    Quanta verdade, neste rasgar de calendários, onde o imposto de coração de ontem, hoje é uma pergunta constante de celebrar … talvez depois de vacinas, ou confinamentos que nos bloqueiam e obrigam a assumir um respirar de cada sol nascente.
    Grato meu amigo pela partilha que obedece sempre a uma ansiedade de ler o próximo capítulo de um sentir.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luis. Obrigado querido Poeta. Vamo-nos supetar e tentar ultrapassar todas as vicissitudes. Vamos escrever um poema. Grande abraço

  9. EM Martins

    Que crónica extraordinária! Não tenho como tu tens, muitas das recordações e rituais da infância e de depois. São todas tão diferentes as nossas vidas. No entanto, ficam como se fossem minhas as vivências e memórias de outros (como tu) e que acabo por interiorizar como se minhas fossem. Como se as tivesse vivido mimetizando-me nelas/com elas.
    Grata, deixo um abraço de coração

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Em. Tão bom ter-te aqui. Que estreia maravilhosa. Como escreveste a tua experiência! Somos dos afectos. Somos dos abraços que valem a pena. São essas as nossas grandes festas. Abraço-te.

  10. EM Martins

    Que crónica extraordinária! Não tenho, como tu tens, muitas das recordações e rituais da infância e de depois. São todas tão diferentes as nossas vidas. No entanto, ficam como se fossem minhas as vivências e as memórias de outros (como tu) e que acabo por interiorizar como se fossem minhas, como se as tivesse realmente vivido mimetizando-me com/nelas.
    Deixo, grata um abraço de coração

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Em. Já respondi. Beijinho

  11. Esmeralda Machado

    Como o compreendo meu amigo, sinto o mesmo, referente a festas em que há “obrigação “ de dar um presente.
    Já vivi Natais felizes na minha infância.
    Tinha um avô incrível que me mimava muito.
    Presentemente tenho de ganhar forças para ter um Natal normal, por causa dos meus netos mais pequenos.
    Eles deliram com o Natal, com as prendas, com o Pai Natal etc.
    Só desejo que esta época passe depressa.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Esmeralda. Os nossos queridos avós são a nossa maior recordação dos Natais. Hoje somos de outras festas. Talvez um dia se lembrem de nós. Abraço grande

      1. Esmeralda Machado

        Obrigada Amigo.

Comments are closed.