Crónica de Jorge C Ferreira
As divisões artificiais
É deste mundo cansado, flagelado, perigoso, que vos falo. Falo-vos do dia-a-dia dos que conseguem ignorar o que se passa à sua volta. Dos que discutem futebol a defender o seu clube até à morte e discutem política, quando há eleições, como se discutissem futebol. E o mundo cada vez mais cansado, mais triste. Enquanto eles se vão enfrascando. Mais um Whisky e duas pedras de gelo. O café da desordem moral. Essa gente que não entendo. Gente que, no entanto, existe em cada esquina por destruir.
Tristes também vão ficando os que pensam na vida dos outros. Porque o mundo não pára. Porque amanhã podem ser eles e não sabem se alguém vai pensar neles, ou apenas porque não são capazes de viver de outro modo. Porque ainda têm uma ideologia, porque ainda acreditam na utopia. Pobres coitados, há quem lhes chame. Assim não vão longe, é outra frase ouvida. «Vivam a vida», dizem outros. Tudo o que é impossível para quem pensa no mundo de um modo global e humano.
Para quem tem nos ouvidos o grito que não se consegue deixar de ouvir, um barulho que nos invade a vida, as explosões que nos ensurdecem, a desgraça da desgraça, o sem razão que acontece sem aviso, o pó em vez de casas, um céu estranho de tanto escuro, a vida a cheirar a pólvora. Há quem saiba que o acontecimento mais próximo será a sua morte. Não sabem como nem quando. Só sabem que assim acontecerá. Cada um será mais um naquelas imensas listas sem nomes. Tudo por mais um pedaço de terra, por mais um pouco de poder. Muitas vezes é só areia. O pior é o que existe no subsolo.
O que eu amo o deserto e o silêncio! É quando penso naquelas dunas que que me vêm à cabeça as conversas à volta de um chá, sentados em almofadas à porta de uma casa térrea, num oásis no meio do Sahara. Chamávamos ao acto ir tomar chá com o profeta. Um homem alto de palavras profundas e um francês impecável. Tudo isto a mais de quatrocentos quilómetros a sul de Argel. São inesquecíveis os tempos das viagens. Das aprendizagens. Dos companheiros e da companheira que viaja sempre comigo.
Agrestes são as falas que oiço em línguas que não entendo. Não é porque não queira entender. Foi porque nunca caminhámos para ter um modo único de nos entender. Assim inventámos fronteiras, fizemos e desfizemos países. Tudo coisas de uma artificialidade estranha. Visitei países que já não existem e já fui a outros que foram criados depois do meu nascimento adulto. Há cidades que já não sei a que países pertenceram. Fui de Lisboa a Paris num autocarro cheio de emigrantes e regressei do mesmo modo. Fui também de Lisboa até Roma e voltei de autocarro. Chegar a Vilar Formoso desde Lisboa sem autoestradas, era uma aventura. Conheci Londres, quase como conhecia Lisboa. Fui à antiga URSS e mais tarde à Rússia. Fui a Leninegrado e a São Petersburgo indo à mesma cidade em tempos diferentes. Mas Lisboa foi e será sempre a minha cidade.
Não vou dizer-vos que mundo ainda vou aprender, porque, na verdade, não sei. Houve uma altura em que o meu nome era partir. Agora estou mais calmo. Estou mais velho. Estou mais pensativo.
«Olha que já era tempo de partirem para qualquer lado.»
Fala da Isaurinda.
«A ver vamos. Há alguma vontade.»
Respondo.
«Só vos ia fazer bem. Já cá estão há muito tempo.»
De novo Isaurinda, e vai, um ar meio desconfiado.
Jorge C Ferreira Julho/2024(440)
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Obrigado José Luis, meu Amigo, Poeta. Que excelente comentário. Foste direito aos assuntos e cortaste a direito. Não deixaste nada pot dizer. Que belo contributo para este nosso espaço. Muito grato. Abraço enorme
A, Arte de bem escrever está consigo, meu amigo.
São eloquentes as suas palavras.
Uma análise profunda, sobre o horror que avassala o mundo. Como era bom, escutar só o silêncio do deserto.
Vamos acreditar, meu poeta, nunca deixar para trás a nossa cidade. Lisboa!
Obrigada, meu amigo escritor.
Abraço grande.
Obrigado Maria Luiza, querida Amiga. Ter sempre esperança nun mundo melhor e nunca esquecer a luz de Lisboa. Belo e generoso o seu comentário. A minha gratidão. Abraço grande
Excelente. As memórias de viagens. Tão próximas e tão distantes. O mundo em que vivemos. Unidos por montes e vales, rios e oceanos. Afastados por divisões artificiais. Á humanidade sofre. Para muitos a vida continua, indiferentes aos gritos de dor. Seguem, sem olhar para o lado, fechados no seu mundo. Outros sofrem em silêncio, sem nada poder fazer. Guerra, destruição. Incompreensível. O mundo treme. As florestas ardem. A larva desce montanhas. Crianças morrem á fome. Os senhores da guerra indiferentes. O ódio mata. Tantos inocentes.
Dia a dia, o passo cada vez mais lento. Saudades das viagens. Ficam as memórias.
Obrigada Amigo por estar desse lado. Abraço.
Obrigado Eulália. Tão bom ler o que escreveu. Está lá tudo. Uma forma crua e nua de dizer as verdades. Sempre assertiva. A minha enorme gratidão. Abraço enorme.
andanças pelo mundo. os lugares
onde aprendeste paz. regozijos. luares antigos.
a passagem pelo corredor largo da mente.
ainda a inconsciência de quem se perde no que é inútil e vago, uma espécie de ópio.
a vida a suceder.
os retratos do passado. a preto e branco.
as afrontas, os cárceres, as contendas. sem fim à vista .
as mordomias e os compadrios.
essas feridas abertas da civilização contemporânea.
e a tua visão do que nos cerca.
sempre tão lúcida e esclarecida.
tão presente.
tão vigilante.
a idade tem destas coisas.traz-nos os achaques do corpo mas a perspicácia
e a acuidade sobre a vida.
mais lentos mas mais observantes e
analistas.
amei.obrigada, meu amigo escrivão.
Obrigado Mena. Sempre a beleza da tua escrita, da tua poesia. A forma delicada e o quase delírio com que nos presenteias. A minha imensa gratidão, querida Amiga. Abraço enorme.
Caro Jorge, vim aqui só para relembrar que admiro imenso a sua arte de escrever, de sentir… Muitas cumplicidades.
O nome “partir” assenta-lhe bem.
Abraço
Obrigado Fernanda Luis. Que bom estar aqui, neste nosso espaço. A minha imensa gratidão pelas suas palavras. Abraço grande.
Magnífica crónica! Como é bom viajar contigo na tua poesia Obrigada Poeta Amigo Jorge C Ferreira 👏🏼👏🏼👏🏼Forte abraço
Obrigado Claudia, minha Amiga de tanto tempo. Também eu goste que viajes com as minhas palavras. Muito grato. Abraço grande
Tempos idos, em que conheci o mundo, mas na memória das estadias, apenas os momentos da viagem, porque o “trabalho” era a essência da dita.
Adorei ler-te, como sempre nesse sentir do ontem e do hoje, numa reflexão que desenhas em parágrafos excelentes, “credenciados” pela voz de Isaurinda.
Alio-me ao teu reflectir do “fazer cair”, por razões anómalas e demolidoras de conquistas … ditas confrontos, ou guerras sem um milímetro de razão, nos “prefácios” de loucos, que dizem saber escrever avanços conquistados.
Tal como tu, quantas vezes hesito sair para encontrar sorrisos … porque as nódoas negras das desilusões são marcas em alerta deste mundo louco.
Que bom seria , se um chá anti-infecção fosse consumido em sorrisos de glória e a solidariedade rimasse com verdade em cada idade sem maldade.
Caro amigo, que muito estimo e admiro … aceita o meu abraço e impulso, para que cada gota do teu viver, possa continuar a ser um bonito resumo nas páginas criativas e apelativas do teu escrever.