Crónica de Alexandre Honrado – Um mictório faz sempre falta

 

Crónica de Alexandre Honrado
Um mictório faz sempre falta

 

Silva não gosta de liberalizações. De tudo um pouco e mais alguma coisa e a indignidade tece-lhe oposição; acorda com urticária e deita-se num palacete que remodelaram para as suas necessidades. A vida assim até parece fazer-lhe sentido.

A palavra necessidades enerva-me e só me acalma quando penso na fonte revolucionária de Duchamp, um urinol, um mictório de porcelana que o próprio comprou barato para remodelar como peça de arte. Isto foi em 1917, mas todos os mictórios me fazem esquecer o Silva, que não gosta de conquistas como as proporcionadas pelas liberdades, as de pensar sentir e agir, nem de revolucionários, tenham uma guitarra na mão ou uma G3. Até os acusa de serem excessivos, como se a revolução fosse um pas de deux no melhor bailado, e já não digo Romeu e Julieta, porque aos Silvas não encaixa isso do amor, menos se for livre e muito menos se não for aprovado pela casta.

Silva não gosta de flores. Viu a miosótis numa lapela e alguém explicou-lhe que a miosótis (do grego muosotis, ou orelha de rato) alude ao amor verdadeiro, à fidelidade e à lealdade. Coisas de que não gosta. E como não gosta de afetos nem de renovações, fica lá no seu quintal a remoer.

Silva não gosta de coisas e como trata as pessoas como coisas, não tem perfil para gostar de pessoas. Não gosta, simplesmente. Não gosta que se viva do lado da luz, porque não quer partilhar o sol da praia da sua infância. Lá na aldeia não havia muito mais e ele prefere trevas para todos. O Silva não gosta do futuro, porque lhe foi confortável o passado e todos os acasos ajudaram a que medrasse. Mas como não gosta de flores, evita também gostar disso mesmo, de medrar, e fica-se no fundo do bolso a contar os trocos que lhe sobraram de uma venda muito favorável que fez por causa de uma informação ainda amais favorável. E assim definha e fica mórbido, pele e asco.

Silva não gosta dos outros. Só porque sim e às vezes porque talvez, o que no seu caso é abrir enormes exceções.

Sempre que ele não gosta, lá estou a correr para o urinol de Duchamp, a pensar que o material já pronto dá belíssimas obras de arte.

Tenho um antigo cabide de madeira, desses altos para pendurar fatos e camisas, e está agora pintado, por mim, de vermelho – só porque o Silva não gosta de vermelho.

Não tenho nada contra o Silva e até penso que se não fosse aquilo que ele odeia o pobre do Silva nem conseguia odiar e dizer livremente o quanto odeia isto e o imenso que detesta aquela e aquele. Livremente, sim, apesar da evidência: o Silva não gosta dessas coisas, livre, liberdade, livremente.

Vi-o na praia, por acaso, com a cara transtornada num esgar: de onde raio saiu tanta gente para vir para aqui entabular – perguntava ele?

Provavelmente saíram todos do tempo antigo, em que alguns poucos Silvas mandavam e só porque não havia mictórios que os evacuassem de vez.

 

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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One Thought to “Crónica de Alexandre Honrado – Um mictório faz sempre falta”

  1. Vitor José Pinheiro

    Que mais vou dizer?
    que grande artigo!!!! assim merece a pena “perder tempo” para ler!!!!!

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