Crónica de Alexandre Honrado – Sós – ou quase todos

Sós – ou quase todos
Por Alexandre Honrado

 

Faz muito pouco sentido acreditar que a velha fórmula Direita e Esquerda é a mais indicada para o entendimento da composição política desejável. Os termos “esquerda” e “direita” apareceram durante a Revolução Francesa, de 1789, e o subsequente Império de Napoleão Bonaparte, quando os membros da Assembleia Nacional se dividiam em partidários do rei à direita do presidente e simpatizantes da revolução à sua esquerda. Ambas as expressões são hoje o retrato confuso de grandes miscelâneas cheias de contradições e nos momentos em que se tornam mais extremas não deixam de trocar acusações que as leva ao profundo abismo do ridículo. Os partidos que nelas se reconhecem estão estagnados, pensam estar numa época em que as suas propostas faziam sentido, esquecidos que o universo mais significativo é o popular, que fala uma língua diferente da elite, que conhece a dura realidade do dia a dia, bem diferente da dos salões bem aquecidos, dos restaurantes bem servidos, dos bancos bem cobertos nos seus negócios inexplicáveis. Uma evidência tem sempre vários aspetos – e muitas vezes o que nos apresentam como evidência não passa de uma armadilha bem apoiada em mentiras sabiamente construídas.

No dia 5 de outubro, dia da implantação da República em Portugal, li nauseado comentários nas redes sociais dos que remetem a dialética para uma passeata pelas latrinas: a monarquia matou mais, os republicanos mataram mais, somos melhores do que vocês, vocês são piores do que nós alguma vez seremos. É o mesmo tipo de esgrima quando Nazismo e Comunismo vêm à liça, vejam os crimes deste, olhem para os crimes daquele. O modelo não fica longe da rivalidade entre clubes de futebol, ou distinções do mesmo gabarito: a marcha que desce a Avenida é a melhor se for a do meu bairro. Só que o tempo em que vivemos levantou as pedras que cobriam os lacraus. Os saudosistas têm, graças à Democracia, voz ativa, liberdade de expressão (e de manipulação), porque são parasitas do mesmo sistema que fingem odiar.

Para quem estuda fenómenos de erupção social – que tanto podem ir dos coletes amarelos de Paris aos terroristas de todas as crenças e formatos, dos novos evangélicos de extrema direita que entendem as armas como um prolongamento dos braços que Deus legitima, mesmo que tirar a vida ao próximo pareça a coisa mais banal da existência, isto só para dar alguns exemplos mais apressados -, torna-se obrigatório muscular a distanciação às vozes encantatórias, aos protagonistas que procuram ressuscitar os seus ídolos (os perdedores de outrora, falsos heróis da história que criaram e recriaram tantas vezes o mesmo Auschwitz, o mesmo Valle de Los Caídos, o mesmo Holodomor, copiando entre si as opções das bestas inumanas, sejam elas Hitler, Estaline, Franco, Salazar, Pinochet, Mussolini, Saddam, Mao, Maduro, Castro – cuja sanidade mental é ainda hoje uma incógnita e cujos povos nunca serão suficientemente reembolsados pelo capital humano que lhes foi roubado por essas criaturas de terror e injustiça. Vivemos o período amargurado do regresso dos fascismos, assistimos impotentes aos massacres interétnicos, às guerras entre comunidades, aos tribalismos de ódio, aos fanatismos etnorreligiosos e etnonacionailistas, ao terrorismo de grande escala, à pequena política conflitual que copia o passado naquilo que teve de pior.

É difícil analisar o terror na História, porque a tendência é confundir método e objeto. É difícil não tomar posição quando a nossa tarefa é apenas a de isolar unidades de observação controláveis pelos nossos métodos de investigação que procuram apenas respostas e tantas vezes novas interrogações.

Olhando o cenário político do mundo, vemos o divórcio ente os projetos de poder de alguns e as verdadeiras necessidades de todos os outros – a imensa maioria. Vemo-nos sós, quando afinal somos quase todos.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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