Crónica de Alexandre Honrado | O cano apontado – um texto de Natal

Crónica de Alexandre Honrado
O cano apontado – um texto de Natal

 

Certo chefe de redação – figura e categoria profissional que caiu com o uso, desgastado e tido por supérfluo – de um jornal que, na época, considerámos como uma referência, vaticinava que, um dia, nem na data impressa na capa daquele ou de outro periódico podíamos confiar, até porque as “gralhas”, na altura tipográficas, dizia ele, não perdoam.

Uma das coisas mais comuns nos dias de hoje é o somatório das notícias falsas ou de uma ardilosa construção social da realidade, porque é mais fácil criar um enredo do que prova-lo e os responsáveis pelas notícias, escritas, faladas, narradas, são portadores de recados daqueles que lhes pagam, mal, ao fim do mês. Assim, quem se preocupa com estas coisas, tornou-se de um ceticismo galopante e de uma deceção a toda a prova e a somar com o chorrilho de colagens imbecis nas redes sociais, toda a verdade a que temos direito reduziu-se à envergonhada sombra de uma peça rara de museu. Mentimos à descarada e dizemos, como se brandíssemos uma verdade, que nos mentem à descarada. A isso somamos a portuguesíssima atitude, que se resume na frase “isto só neste País!” (mais uma aldrabice a juntar às outras), ou “a culpa é deles”, quando “eles” – monstrinhos de opereta – são os agentes das nossas culpas, decisões e sobretudo indecisões e conformismo.

Passo os olhos pelas capas dos jornais e uma das figuras divertidas, não isentas, da verborreia nacional, acompanhado por uma foto sua onde aponta um dedo indicador à cabeça como se fosse um velho pistolão do oeste, tenta ser a voz dos deuses e afirma: “não se consegue mudar nada em Portugal” (primeira aldrabice), a que anexa: “Temos uma classe política medíocre e oportunista” (sendo ele dessa “classe” bem podia vislumbrar o erro em que nos quer fazer cair com a afirmação) e finalmente, não contente remata a citação: “Nunca tive ilusões sobre a política”, o que é caso para dizer quem não o conhecer que o compre, pelos vistos já não compram, nem na Black Friday das andanças nacionais. O pequenote, o pequeno Mussolini encarnado que está no Parlamento, deve aplaudir estas palavras e fazer-lhe ver que, com a sua saída da ribalta, sempre há mais rendimento mínimo garantido para pagar os seus próprios caprichos.

Esta gente é que destrói a Democracia e a mina. Portugal não muda? Antes da Democracia estávamos arruinados. O esforço económico ia para empréstimos que mantinham uma guerra em África, longa de treze anos. Escondia-se as dívidas e criava-se a ilusão de que o senhor economista pagava sempre as contas e não devíamos nada a ninguém. E ninguém devolveu aos povos que a travaram, à guerra suja, os filhos que se perderam, a destruição que se promoveu.

Antes da Democracia não falávamos, não cantávamos, não decidíamos, não reuníamos, não dizíamos mal deste – era sempre o mesmo – nem daqueles – a polícia política que o sustinha.

Tínhamos irmãos presos, estropiados, com síndromas de pânico de guerra, outros exilados, emigrados, humilhados, moribundos, mortos, desaparecidos, em valas, comuns e sempre anónimas. Era o que tínhamos.

Os corpos dos nossos familiares quando vinham de África, chegavam às escondidas, em caixões de pinho, chegavam à gare marítima, embarcavam de noite, eram escoltados em camiões militares e escondidos em armazéns de quartéis à espera que algum parente os reclamasse. Havia escândalos – mas estavam escondidos. Pedofilia – mas estava escondida. Crimes sem castigo, mas eram promovidos pelo próprio regime.

A fome era muita. Não havia muitas vezes nem a sardinha para cortar em duas.

Os pés descalços eram os que mais sangravam nas ruas por asfaltar.

Os capatazes atiravam os trabalhadores da jorna para a fome e para a miséria, só porque sim. Morria-se no parto. Morria-se a seguir ao parto. Uma em cada cinco crianças não ia adiante. Em cada sete partos só um tinha assistência médica, dizem as estatísticas. Não era importante ir à escola e no início da ditadura nem ler e escrever se promovia nas escolas: que aprendam com quem sabe ler e escrever. O que interessa é trabalhar e obedecer.

O atraso da vida (nos campos e nas cidades acanhadas) era promovido oficialmente. As mulheres eram cidadãs de segunda e só alguns homens tinham a ilusão de ser alguma coisa. Quem bem que se estava, todavia, na elite! Podia ir-se à praia, mesmo em territórios que tinham a guerra do outro lado da baía! Os analfabetos, a pobreza, a falta de liberdade! E o medo! Já alguém teve a coragem de escrever a história nacional do medo? Só neste País! Não se consegue mudar nada em Portugal! Agora até se reclama com o Serviço Nacional de Saúde, mas só o temos graças à Democracia. Antes, morria-se. Ou pagava-se, quem podia, para morrer o mais tarde possível. As balas da PIDE ajudaram sempre a abreviar o prazo. Para que saiba e conste: mudámos muito e radicalmente. Somos completamente diferentes do que éramos antes da Democracia, não só porque vamos ao médico de família, com o nosso passe social, mas porque comemos todos os dias, porque vivemos e trabalhamos de forma diferente, porque temos pretensões diferentes, porque estudamos, fazemos Erasmus nas quatro partidas do mundo, porque temos mais consistência crítica e queremos sempre mudar, porque não nos conformamos. A falência de uma classe política falida está bem visível na capa do jornal, na assembleia, com os seus meninos-mussolinis, ou com outros radicalismos que nos envergonham. A História e a Memória parece por vezes condenar-nos. Por isso desenvolvemos uma amnésia transcultural, que não leva connosco o pior de nós quando rumamos a novas paragens em nome da nossa sobrevivência. Mas a dor do que ficou para trás por vezes volta. E desenterram-se fantasmas e deseja-se a construção de museus aos ditadores que nos odiaram, porque o passado deixa sempre esse equívoco: a nossa juventude foi lá que deixou a esperança.

Antes da Democracia, nascíamos, crescíamos, vivíamos como calhava. Com ou sem ajuda, mas normalmente sem ela, no campo ou na cidade, quase sempre a pedir licença para respirar e essa não era fácil de obter.

O sujeito aparece-me de dedo apontado na capa do jornal.  O outro imbecil de extrema-direita conspurca uma das palavras mais bonitas do nosso sentir coletivo, que na boca de um traidor é sempre uma traição: pátria.

Há quem tenha medo e por isso se renda. Estes são os políticos do medo. Vivem à nossa custa, como alguns fungos que tomam conta de certas unhas desprevenidas. Criaturas terrorizadas com aquilo que não percebe – a cultura dos outros – e que querem convencer-nos pelo terror. São o lado medíocre e oportunista da única coisa com que podemos contar em Democracia: a política.  Uns apontam o dedo pistola outros pedem pistolas para os dedos. Não merecem a malga cheia com que a Democracia os alimenta.

Creio que este é um texto para a época Natal, onde se estima que os portugueses façam compras na ordem dos 400 euros por pessoa. Espero que comprem para quem precisa, e há muitos que precisam, mas que não se esqueçam que este País já foi o oposto dessa euforia de comprar, porque vivia em barracas e não tinha o que gastar.

 

Alexandre Honrado

 


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