Crónica de Alexandre Honrado – O campo da morte lenta

Crónica de Alexandre Honrado
O campo da morte lenta

 

No meio de outras leituras, aparece-me um documento pelo meio de muitos, que fala de um campo de concentração.

Para quem não sabe, e Portugal não deve esquecer o lado mais negro da sua história, aqui estava o documento, sobre o campo de concentração português, o Tarrafal de triste memória.

Não há justificação para quem hoje queira exaltar o passado, dizendo que antes de abril de 74 o país era melhor. Seria talvez melhor para um punhado de privilegiados, mas é sempre assim, há sempre os que beneficiam alguma coisa com os regimes políticos. No entanto, era um país sem liberdades, com corruptos e corruptores, com chulos do sistema – a começar pelos “bufos” que denunciavam à Polícia Política até os próprios familiares, a troco de uns tostões, um país com ladrões, escândalos financeiros e sexuais, violações sucessivas de direitos humanos, onde o sexismo, o racismo, a xenofobia, o machismo e coisas como essas eram protagonistas num quotidiano pobre, sofrido, angustiante, enlouquecedor. Nojento.

Era um país pobre, a gabar-se de algumas reservas de ouro que não tinha ganho nem merecido, com fome, prisões cheias, mentes vazias, promotor de uma guerra colonial que durou treze anos fomentando desgraça, horror, mortos, deficientes… Num espaço colonial que não lhe merecera qualquer tipo de respeito ou atenção, talvez com as exceções do Ultimato (no final do século XIX) e nos inícios dos anos 60, quando os Impérios morriam e refletiam sobre a sua absurda existência.

Um País com presos políticos e muito medo. Sobretudo, um país com medo.

No dia em que lia o documento sobre o Tarrafal, que foi campo de concentração para presos políticos portugueses e depois para resistentes anticoloniais, de 1936 a 1 de maio de 1975, uma das grandes criações do Estado Novo – o campo da morte lenta como era conhecido -, no dia em que lia o documento, juntavam-se as direitas numa espécie de piquenique de ervas amargas, e a televisão promovia um encontro entre tristes figuras de cada um dos setores que se reclama de direita. A necrofilia bem presente, a saudade de um passado que não viveram e que provavelmente também para estas criaturas habituadas ao desafogo da democracia seria insuportável. Netos oprimidos de avós opressores, em suma. Figuras de uma opereta perigosa, onde os solistas são sempre e sempre foram fantoches de interesses muito poderosos e obscuros. Um grupo unido numa triste figura, dessas que o País engole e permite, porque a democracia é isso, uma cultura de tolerância.

Não falo das esquerdas agora, porque não estavam no seu dia, não é delas a crónica, nem nunca foi delas o campo de concentração, só nas celas, na “frigideira” onde se morria ou mal vivia. Quando falar, tenho a dizer.

Releio as palavras atribuídas ao diretor do Campo de Concentração do Tarrafal, Manuel dos Reis: “Quem vem para o Tarrafal vem para morrer” e outras, alegadamente do médico Esmeraldo Pais Prata: “Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbito”.

Se vier a escrever sobre as esquerdas, tenho outras coisas a dizer. Agora é das direitas, que trazem o horror e a morte no currículo, e o pior da nossa História para partilhar e recordar. Livrai-nos o futuro e a sorte da história da velhice dos estados novos.

 

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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