Crónica de Alexandre Honrado | Não sei dançar ao som da morte

NÃO SEI DANÇAR AO SOM DA MORTE

 

Morreram duas pessoas na Praia dos Pescadores da Ericeira, caíram de um muro que acaba no passeio do Largo das Ribas e se precipita até ao areal, o mesmo de onde partiu a família real para o exílio, embarcando na barca Bomfim para alcançar o iate D. Amélia e, indo nele, procurando um novo mundo.

Da praia da história e da felicidade dos risos de Verão e dos gritos dos miúdos ao entrar na água fria, da praia da ansiedade dos monarcas receosos, há ainda que somar a praia do luto (já ali morreram outros) e o mais recente na pessoa de dois turistas, que o jornal britânico Daily Mail, antes de nós, identifica como sendo Michael Kearns, de 33 anos e de nacionalidade australiana, e a sua companheira britânica Louise Benson, de 37.

Não nos surpreendemos com a notícia. Conhecemos bem o local e muitas das suas histórias, e a falta de policiamento (em especial noturno, apesar da Guarda ter quartel a poucos metros) que permite o vandalismo (sobretudo em carros dos moradores, simplesmente estacionados), somados às exibições de equilíbrios pós-shots, malabarismos dos ébrios num muro sem piedade que os largará no vácuo ao menor deslize, mais os coros dos bêbados a altas horas da madrugada, e as cenas menos aptas a serem descritas nestas linhas pudicas.

Ao mesmo tempo, é também o Largo dos melhores convívios, o balcão sobre o mar, o poto de encontro entre olhos enamorados e pores de sol incomparáveis e inesquecíveis, pátio de festas e amores, veraneios e prazer, plateia dos fogos de artifício que o palco das festas tanto engrandece.

Num dos cantos tem uns caixotes de lixo metálicos que convidam à separação cívica dos desperdícios – vidro, cartão, orgânicos – mas que são normalmente vandalizados, pelos vândalos e pelo vento tempestuoso, com cheiros que incomodam até à náusea os que vivem no local, ainda as moscas e as ratazanas que não são convidadas de uma vila que é considerada uma das mais belas do País e da Europa…

E agora, a morte de Michael e de Louise, em cima das festas populares.

Horas depois dos cadáveres serem descobertos, as marchas bailavam no mesmo largo. Estranha celebração. Mesmo as marchas de Lisboa e Porto são uma estranha composição de interesses históricos – das Maias e das celebrações do solstício de verão, à proibição das touradas no Terreiro do Paço que alguém resolveu substituir por danças e cantares, ao encerramento em 1916 do Mercado da Ribeira ao uso popular, que em 1925 reabriu as portas e os folguedos. Já sem falar das caricaturas que os portugueses faziam aos invasores franceses e às suas Marches au Flambeaux, as marchas dos archotes, adaptada da tradição francesa, com origem provável nas danças de Entrudo ou nas comemorações da tomada da Bastilha.

Até o escritor William Thomas Bedford falava das marchas de Santo António, em 1787, referindo-se a uma cidade toda iluminada e em festa, surpresa para quem enterrara mortos tão perto, em 1755, com o feroz Terramoto que ainda era visível décadas passadas.

Festa e morte, nem sempre assim tão distantes…

Morreram duas pessoas na Praia dos Pescadores da Ericeira e horas depois dançava-se junto ao muro que as viu partir. Com a marcha da vila a encher os olhos dos turistas ocasionais.

A história é a ficção das ficções – disse Eduardo Lourenço, que tanto estimo e tanto cito.

Não sei dançar ao som da morte – que é um silêncio a gritar memórias. Mas esta história é a prova da ficção das ficções, do tempo que se amarrota e que se calhar por isso não percebe se tem – ou não – futuro.

 

Alexandre Honrado
Historiador

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