Crónica de Alexandre Honrado | Mau tempo. No canal

MAU TEMPO. NO CANAL.

 

Almoço.

No local público há televisores em todos os recantos, de modo que na perspetiva de cada um não falte uma imagem, uma só que seja, do circo mediático.

Os que não olham para os pequenos ecrãs dos telemóveis olham para os ecrãs medianos dos televisores. Poucos olham para o parceiro de mesa.

Nos ecrãs, como na velhas casas dos horrores das feiras populares, só há sangue e morte, nuvens ameaçadores e gritos de sofrer. Mas na casinha dos horrores da feira nada disto é verdadeiro. Aqui, a construção social de uma realidade, torna capaz de materializar em verdade os momentos mais improváveis do imaginário.

Nos pratos, só a cabidela de lampreia ou galinha andam por perto da sangria dos ecrãs. Isto sem falar da quantidade de animais mortos que saem reciclados da cozinha em pratos fumegantes.

Se alguém perguntar qual é o prato vegetariano, o empregado mais próximo diz sem pundonor que aquele é um restaurante sério, não tem cá disso, nem vinho a copo, que não é taberna.

Nos ecrãs desfila a desgraça e a morte.

Gente que acampou numa falésia arriscada em pleno temporal e que perdeu a vida ou ia perdendo. Gente que se insurge contra a limpeza dos terrenos como medida preventiva para outro verão assassino. Gente que resolveu chamar para o seu partido os louros, dirigindo inquéritos e comissões, criando associações de apoio às vítimas, faturando como pode, política e economicamente, com a desgraça alheia. Esqueceram-se do tempo em que foram poder e contribuíram para essa mesma desgraça alheia.

Não há um pingo de humanismo ou de solidariedade no que dizem, menos ainda no que fazem. Aqui e acolá há cada vez mais daqueles tiques de autoritarismo que no passado já pagámos tão caro, ao longo de gerações. E há sobretudo a confusão entre o perigo de se ser nacionalista e a dignidade de se ser patriota. Uma televisão de serviço público, em vez das suas novas ficções bacocas – a última faz uma caricatura de um “comunista, crítico de cinema”, em que a personagem é inverosímil e chocante. Seu eu fosse uma coisa ou outra – crítico de cinema, comunista, ator, ou serviço público – moveria um processo por atentado ao pudor e à inteligência.

Comemos, desinteressados, o nosso pudim, o nosso quindim, bebemos bicas, não brindamos à saúde.

No ecrã vê-se crescer um animal perigoso que não ama o próximo e tem tentáculos que sufocam até à morte.

Há muita falta de memória. Há muito desconhecimento da História.

Há mau tempo. No canal da Tv e em cada um dos becos que enfrentamos.

A conta por favor (se não estivermos a pagar ainda a mais cara das faturas).

 

Alexandre Honrado

Historiador

Partilhe o Artigo

Leia também