Crónica de Alexandre Honrado – Mal dobrado este novelo do tempo

Mal dobrado este novelo do tempo
Por Alexandre Honrado

 

O tempo passa como um novelo mal dobado.

Dobar, caso não saiba, pode ser o ato de enovelar o fio de uma meada ou o de dar voltas e mais voltas, simplesmente o voltear.

Costumo dobar a minha cabeça e o que vai nela, nem sei ao certo o que lá se passa, tanto é o tráfego, a exultação, a exaltação.

O tempo passa como um novelo mal dobado e no entanto não tem essa existência formal: um novelo compra-se, usa-se, desenrola-se, aplica-se, torna-se coisa útil e o tempo é uma estonteante abstração.

Costumo dobar a minha cabeça, já o disse, mas também é meu costume sorrir quando alguém perto de mim argumenta que não teve tempo.

O tempo não se tem.  É um ponto isolado de um todo. É a coisa mais passageira que nos desafia.

É no tempo que ficam – e desaparecem as memórias. Quando desaparecem ganham um novo estatuto e dão pelo nome de esquecimento. O esquecimento é assim uma espécie de silêncio, uma incapacidade de reter o presente, de evocar o que se passou e sobretudo uma inaptidão para imaginar o futuro e alguma coisa que possa conter de melhor para uns, outros, mesmo todos. Assim, o tempo pode ser o que se diz, o que se disse, ou ainda o não-dito, o não lugar que por vezes somos, vazios e silenciosos, mesmo inúteis, ponto oco de passagem da frivolidade, do desnecessário.

O presente e a memória não são irmãos. O ar que inspiro é passado no ar que expiro. O presente é o ato no instante – passa depressa. Passa logo. E ao passar pode ou não ser a memória, pois só fica em nós o que significa alguma coisa para nós. É por isso que o passado dos outros parece para alguns uma coisa desinteressante: o que nos pode interessar se viveste mal há uns anos, se eras presos, torturado, morto só por ter ideias, tudo em nome da minha rica vida – o que pode interessar-nos se não foi essa a nossa vida?

Talvez este vazio de uma não memória sirva para entender porque é que os nossos tempos estejam cobertos por tanta ignorância e por tanta ingratidão.

O que nos interessa a generosidade dos que se bateram por nós, se nós nascemos já com os privilégios dessa generosidade e das suas conquistas?

Estive com uma meia dúzia de crianças e tentei, de modo suave, perceber o que percebiam. Todos sabiam explicar-me o que era a guerra, o que era a liberdade. Nenhum conseguia explicar-me o que era a paz – alguns, na casa dos cinco e dos seis anos, confessaram não conhecer a palavra, o que muito me surpreendeu -, e a coisa piorou quando a conversa se inclinou, muito suavemente, para a ideia de repressão (explicada com grandes cuidados, admito).

É assustador como entre os mais velhos, crianças muito grandes que somos, muitos lapsos como estes vão surgindo. Gerações de não-memória, tempo perdido, novelos dobados sem convicção tomaram conta do quotidiano e, por omissão, incúria, preguiça e analfabetismo vão decidindo a sorte coletiva,   por ignorarem o passado recente, por endeusarem os carrascos que lhes prometem dureza e cárcere.

Alguns de nós, todavia, teimam em usar a voz pelos que a não têm. Alguns de nós militam em organizações anónimas e perseverantes que, em paz, lutam sem cedências. Alguns de nós sabem que o inimigo maior é a injustiça forjada na amnésia afetiva, aquela que impede a memória superior dos afetos e das ações com dimensão humana (não confundir com as ações dos seres aparentemente “humanos”, onde recolhemos igualmente, com asco, os preconceitos, a promoção das desigualdades, o desdém pelos direitos, também o desprezo, a indiferença, o distanciamento dos e pelos deveres. Esses seres negam a diferença, a equidade, têm discursos e atos medíocres, por vezes populares por serem populistas, que se estabelecem perante os outros como promotores de uma moralidade nauseabunda, messias de um modelo de sociedade já várias vezes derrotada, que nos propõe a guilhotina e fecha as mãos nos pescoços desorientados.

Todas as causas são diferentes, diria. Só a luta pela afirmação da diferença não o é.

O tempo é este e dói muito.

O novelo é este e merece reconhecimento.

A memória esvai-se e todavia o que ficou para trás serve aos que ficaram e sobretudo aos que de nós virão – o segredo está em recordar.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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