Crónica de Alexandre Honrado – Faz tanto frio pelo mundo fora

Faz tanto frio pelo mundo fora
Por Alexandre Honrado

 

A História espera sempre que alguém a escreva. E convém escrevê-la. Reparem como todos as grandes civilizações sem escrita acabaram por desaparecer.

A História esconde-se nos seus recantos, labirintos e esquecimentos, fica a pairar por séculos e séculos até que algum golpe de sorte lhe dê a luz do dia. Ou da lanterna. Ou da vela. Ou do degelo como parece ser agora o caso, triste caso que coincide com aquilo que o “grande sábio” Donald Trump – e outros como ele e refira-se que são mais do que aqueles que merecemos – negava firmemente: que o planeta aquece e que esse aquecimento, global, nos aponta um novo e muito difícil caminho a percorrer.

Trazem-me ao conhecimento o que se passa, e termos históricos, na região do norte de Itália, junto da fronteira da Áustria onde o gelo costuma ser o soberano. Ali se travou a chamada Guerra Branca, naquele que era o pior dos palcos do conflito da Primeira Guerra Mundial, já se si tão brutal e aflitiva. A Guerra Branca, travada na neve, opondo forças italianas e austro-húngaras que se atacavam sem sentido e que morriam pela força da metralha e da adversidade do clima.

Derretidas as geleiras dos Alpes por causa do “tal” aquecimento global que Trump tanto negou, ficaram os vestígios a descoberto. Só pararam as investigações porque o COVID é o que é. À luz dos descobrimentos ficaram corpos (congelados em posição de combate), armas e munições. Têm vindo a ser estudados, estes “vestígios” nos últimos anos e todos se referem à mesma zona, a região de Trentino, a uma altitude de 3 mil metros, num local onde a memória se  fez história. Foram encontradas, por exemplo, 200 munições, cada qual com dez quilos, explosivos que não chegaram a matar o seu inimigo – porque a morte se lhe antecipou.

A parte humana deste descobrimento inclui não só os corpos dos jovens militares mas também os seus objetos pessoais. Há um pouco de tudo, de agendas a cartas e pedaços de roupa.

Durante a Primeira Grande Guerra, o primeiro conflito global, perderam-se milhões de vida, num dos episódios mais sangrentos, inúteis e censuráveis da história dos seres humanos. Mas ainda no final do conflito, ao que parece nos últimos dias de 1917 e seguramente em 1918, prolongando-se pelos anos seguintes, uma pandemia mataria mais pessoas que a guerra, por si só hedionda e vergonhosa. Nessa altura, não se sabia o que era sequer um vírus e até pessoas com “certo nível de cultura e aparente razoabilidade” desdenhavam de quem provava a existência de “seres maléficos” que nem uma lente potente conseguia dar a ver.

Os imbecis dessa época são muito parecidos com os de hoje. E a história parece decalcada em certos aspetos: desdenhar de quem tenta resolver de facto o problema, apontar o dedo por apontar, descarregar a frustração individual e coletiva acusando o próximo, desobedecendo a regras básicas de conduta que tornam cada prevaricador num assassino sem remissão.

A memória gelada de Trentino paira sobre a frieza dos dias que vivemos.

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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