Crónica de Alexandre Honrado – A multiculturalidade não tem discussão

A multiculturalidade não tem discussão
Por Alexandre Honrado

 

Não existe quitação – que é como quem diz, prova de pagamento – em relação ao tempo devedor que pode apresentar provas da memória para que a história de hoje não se repita nem caia nos seus mais profundos erros.

Ficando a dever ao tempo passado, excluída a memória como se fosse limpa uma nódoa, ficamos interditos, prisioneiros das mentiras geradas e vemos nascer aberrações sem pudor nem lógica.

O longo fio narrativo que acompanha a evolução de um País ao longo dos séculos viu necessidade de criar mitos para apaziguar os povos. É a essa narrativa que chamamos surpreendentemente identidade, quando sabemos que aquilo que identifica um ser humano dificilmente identifica o seu semelhante.

Os mitos fundadores, construtores, não são mais do que isso, mitos. Ficamos de quando em vez à mercê de quem os revisita – uma vez é Camões, cantando um reino que se tornou sublime à distância, outra vez é Fernando Pessoa, sofrendo o País incumprido, mais além Teixeira de Pascoais fornecendo esta imagem de um País esconso, “ermo lugar de aparições”, Eduardo Lourenço a falar de Portugal como um destino, José Gil a denunciar-nos como medrosos da existência e alguns não tão inteligentes que querem tornar-nos e alguma coisa que dispensamos bem

Infelizmente, todos, essa é a angústia, a ficarem numa falta de memória aviltante que leva muitos a perguntar: quem são? Porque estão destinados ao esquecimento?

É que nós, navegando entre simbologias, ignorando-as, vamos fundeando onde calha. Temos a noção de que a “memória coletiva”, a existir, será tão somente uma revisitação de feitos amplificados por uma memória parcelar de quem não viveu essa heroicidade e se perdeu nas brumas de um qualquer esquecimento.

Inventamos que coisas como a saudade são apenas nossas, aceitando uma saudade onde mal se reflete a esperança de qualquer outra história prodigiosa saída das nossas mãos, uma saudade sempre vácua desse incumprido destino, umas vezes sonegado outras adiado. Como se fossemos um País suspenso que, obviamente, nunca fomos.

Deste modo, o retrato oficial de um País parece ser e apenas o do prisioneiro de um imaginário indigesto, entre o que nos é apocalíptico e aquilo que nos é oposição. E sempre sem a prova de pagamento de tudo o que nos tiraram pelo meio.

Não temos assim uma identidade mas um caleidoscópico projeto de vida coletiva, com a herança de uma cultura muito variada, um ponto numa cartografia que antevemos mas não ousamos. Por cima de tudo isto, somos também uma outra gente, dita das quatro partidas do mundo. Temos sangue e cores de pele misturados. Somos mescla. Somos o resultado de uma mobilidade transcultural sempre muito agitada.

A longo prazo nenhuma cultura sobrevive sem a interculturalidade e o que dela resulta (não me lembro ao certo se foi James Cliford o primeiro a ter dito isto em voz alta). Somos diferenças, essa é a nossa grande bandeira, a nossa fantástica diferença. Não há necessidade nenhuma de procurar o debate em torno do multicultural, por ser uma evidência, mas devemos apostar no grande trunfo do intercultural, e no combate aceso contra a amnésia, capaz de criar gerações que não percebem como é que os seus avós sofreram com os assassinos que os perseguiram e que nunca pagaram a dívida que deixaram a todos. É da cloaca desse esquecimento que saem agora vergonhosos dirigentes de partidos que sendo novos são de uma anquilosada senilidade, jogando com a ingenuidade alheia, estendendo a mão simbólica e saudação, essa mesma que um dia vai querer arrancar úteros e olhos de quem não os parou a tempo.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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