Crónica de Alexandre Honrado – A morte de um negro e as liberdades agonizantes

A morte de um negro e as liberdades agonizantes
                              Por Alexandre Honrado

 

Os caminhos da Liberdade estão cheios de pedras.

Quando eu era miúdo, agitavam-me a bandeira dos Estados Unidos com a garantia de que era ali, do outro lado do meu Atlântico, que todas as liberdades estavam garantidas e que graças a homens de valor a escravatura tinha sido abolida, as oportunidades eram dadas a todos, sem distinção de crença ou cor de pele, que uma espécie de paraíso na terra se erguia como na velha ideia de Tomas Moro, o criador oficial de uma Utopia, um lugar idílico para fazer nascer um mundo novo. Era o sonho americano! Uma produção de Hollywood que nos parecia mais encantadora que um filme de cow-boys. (Descobrimos depois que também existiram cow-boys negros que nunca entraram nos filmes e que os índios, senhores do território, tinham sido dizimados pelos colonos).

A Revolução americana no século XVIII (1776-1783), talvez um pouco antecipadora da Revolução Francesa de 1789, tornou independente da Inglaterra treze colónias que seriam o “coração” dos Estados Unidos da América (independência consolidada mais adiante, numa segunda guerra com o Reino Unido, entre 1812 e 1815 que, finalmente, consolidou a independência norte-americana). Era assim um ato inédito, já que nunca uma colónia se separara do seu colonizador mercê de um ato revolucionário. Todavia, a liberdade só se começou a consolidar na sequência da Guerra Civil Americana, também conhecida como Guerra de Secessão ou Guerra Civil dos Estados, travada de 1861 a 1865, entre o Norte (a União) e o Sul (os Confederados). A guerra civil começou principalmente como resultado da longa controvérsia sobre a escravização dos negros. Os Estados Confederados do Sul defendiam os direitos dos estados em manter a escravidão.

Esta ideia da história fascinava alguns povos do mundo. Parecia possível uma dinâmica laica, construída para a coisa pública – a República! -, e para a dignificação dos seres humanos.

Depois de 1865 o caminho foi duro e a luta pela autodeterminação dos povos foi sangrenta e encheu de vítimas um percurso onde a esperança estava também presente. Dos mártires da liberdade, recorda-se inevitavelmente a figura de Martin Luther King Jr. pastor protestante batista e ativista político norte-americano, a figura mais proeminente e líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos (entre 1955 e até seu assassinato em 1968).

As vitórias da Liberdade fariam crer que o retrocesso nunca seria possível. Mas a estranha amnésia dos povos gerou uma impiedosa massa conservadora, netos de esclavagistas e de assassinos, desejosos de escravizar e de matar o seu semelhante.  Gerou Donald Trump, um bufão de reality shows televisivos, milionário à força (o pai deu-lhe alguns milhões para iniciar a sua carreira), burlão reconhecido e aplaudido. Essa estranha amnésia justificou uma corrida ao armamento individual e civil, em cada mão uma arma em cada arma a morte como cultura e prática de vida. A estranha amnésia dos povos matou agora, nesta mesma linha de ideias, o negro George Floyd brutalmente assassinado por um policia branco, ali nos EUA da Liberdade e da diversidade.

Donald Trump devia sentar-se no banco dos réus, porque em primeira análise é coautor deste assassinato.

A mesma amnésia permitiu-lhe, homem sem escrúpulos, nem princípios, nem dignidade humana, lançar o seu povo a uma pandemia que mata de forma absurda e vergonhosa.

Recordo convosco o último discurso de Robespierre – advogado e político francês, e uma das personalidades mais importantes da Revolução Francesa -, na véspera da sua prisão e execução em 1794 (foi morto na França da Liberdade, na Place de la Concorde, em Paris): “Mas existe, garanto-vos, ó almas sensíveis e puras; existe essa paixão terna, imperiosa, irresistível, tormento e delícia dos corações magnânimos; esse profundo horror da tirania; esse zelo compassivo pelos oprimidos, esse amor sagrado da Pátria, esse amor mais sublime e mais santo da humanidade, sem o qual uma grande revolução não passa de um crime fragoroso que destrói um outro crime: existe sim, essa ambição generosa de fundar sobre a terra a primeira República do mundo”.

Tudo isto é conforme ao meu luto profundo; dá-me muito para pensar, enquanto percorro caminhos de Liberdade… cheios de pedras.

 

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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