Crónica de Alexandre Honrado – A morte de um cavalo

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Crónica de Alexandre Honrado – A morte de um cavalo

 

 

Morreu um cavalo. É claro que nos títulos da imprensa mais atenta, o cavalo não tem o lugar mais destacado. Outro tipo de apelos sobrepõe-se à vida perdida do pobre animal, arrastado para o sítio errado em hora errada. Noite de terror, momentos dramáticos, mais sangue na arena do que estava previsto e é da tradição. Dois cavaleiros tauromáquicos a receberem assistência, mais um novilheiro, que “sofreu uma aparatosa voltareta”, outros, até espetadores no recinto que querendo emoção não aguentaram a emoção. Leio isto e depois, mais adiante, que uma “Corrida de Touros, transmitida em diferido, a partir de Tomar, deu liderança à RTP 1.  A RTP1 teve 17% de share, contra 16,5% da SIC e 12,7% da TVI, durante o período da corrida de touros.”

O fenómeno interessa-me, não pela necrofilia inerente, é óbvio, mas pelo emergir de aspetos culturais que constituem o ser humano que somos.

Não tomo partido sobre o Gostar deste ou daquele tipo de espetáculo. Todos os dias o futebol o hóquei, outras modalidades excitam os aficionados. Até o ético rugby, “deporto de arruaceiros praticado por cavalheiros” parece ter perdido os cavalheiros.

Soltam-se olés e bravos nos estádios – como na praça de toiros, que é menos dos toiros e muito mais de quem a frequenta e exalta.

Tenho amigos de grande formação cultural que gostam desses lados da cultura. Com alguns já discuti o que pode considerar-se “tradição” e conservadorismo e a cultura da violência que está todos os dias entre nós, na comunicação social, nas redes sociais, na rua que é ainda o ponto de encontro mais intenso e perigoso do social.

A cultura da violência é histórica, já foi muitas vezes dito. Ver a violência como deleite em horas de ócio, é também ancestral. Mas, paralelamente, também a ética, as exigências morais e a sentimentalidade ocuparam lugar intenso no panorama das emoções históricas.     É voltar ao tema do que escrevi há uma semana: emoção e sentimento. O divórcio entre ambas e a dupla falência que as identifica.

Na enciclopédia lê-se que: “Violência é definida pela Organização Mundial da Saúde como “o uso intencional de força física ou poder, ameaçados ou reais, contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resultem ou tenham grande probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano psicológico, mal-desenvolvimento ou privação “, embora o grupo reconheça que a inclusão de “uso do poder” na sua definição expande a compreensão convencional da palavra”. A definição não fala de animais não humanos, nem mesmo de ataques violentos ao património pessoal, coletivo, nacional, universal. Esquece a pegada ecológica e o que derramamos.

Morre mais de um milhão de pessoas por ano, vítima de violência, diz a estatística.

O aspeto cultural mais agitador é que a violência opera no formato Um sobre o Outro mas também na relação Um sobre si mesmo (a cultura está cheia de exemplos de autoflagelação, automutilação, entre outros).

Da religião à ficção, do pequeno centro populacional à do Estado sobre os governados, da doméstica à estética, a nossa cultura é, entre outras coisas, a da violência. Não importa se é autodirigida, interpessoal, coletiva: violenta-nos. É uma tradição. Mas será que não podemos combater a tradição, procurando em nós alguma coisa melhor que nos dignifique?

Morreu um cavalo. Mas falar disso seria falar da cultura da morte, que anda a par connosco, que prevalece, que é um aspeto cultural como outro qualquer – e por aí fora. Diria até: como a cultura da indiferença que nos diferencia do que muito bem podíamos ser.

 

Alexandre Honrado
Historiador

 


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