Crónica de Alexandre Honrado – A aparência do sublime

 

Crónica de Alexandre Honrado
A aparência do sublime

 

Li muito e discordei outro tanto de certos autores. Fui colecionando invariavelmente ideias que me pareceram destacáveis, pensamentos decididamente “fora das caixas” mais variadas, sem o preconceito de negar a uns a sabedoria por serem desta ou daquela corrente política, deste ou daquele rincão do mundo, deste ou daquele formato ético, moral, crítico ou artístico, não me importa a retórica alheia mas a utilidade do que me comunica. Fundamental, acredito, é aumentar a massa crítica. E aprender, aprender, aprender sempre.

É bem capaz de ser uma ideia torpe, esta. Põe-me do lado dos acomodados, a quem apenas serve a muleta que lhe permita um equilíbrio, seja que equilíbrio for, não tenham dúvidas.

Nos meus cadernos de apontamentos há sempre muitas frases. Por vezes escrevo coisas e rasgo-as, risco-as, ou não as uso  simplesmente por não saber se fui eu o autor da brincadeira, do atrevimento, do registo. Regra geral ponho as minhas inicias no fim da frase – nem sempre consigo lê-la porque tenho uma letra de estranhos feitiços e habilidades contorcionistas, mais vale deixá-la partir ao sabor dos ventos.

Regra geral, ponho o nome dos autores à frente das citações. Não as coleciono. Aproximo-as de mim. Não há nada mais triste do que um citador. Trabalhei com alguns e ainda hoje o lamento. Mas tudo isto agora, perdoem-me tal como o faço a mi próprio, só faz sentido se eu citar duas frases, ambas do sociólogo Robert M. MacIver (que por pouco não tinha o apelido de um famoso personagem de TV). Porque são duas frases que me abalam. A primeira parece-me mais difícil, mas é de uma profundidade imperdível: “A mais completa denúncia de um mito social chega muitas vezes quando o próprio mito se está a desvanecer”.  Penso muito no teor desta afirmação. Vejo como certos mitos desvanecidos exigem que, por ter chegado a hora, os denunciemos. E todavia, assisto a uma crescente onda de saudosismo, de lavagem de imagem de tempos nauseantes, de ditadores nauseabundos, de comportamentos nauseosos, que ficaram a dever-nos tudo o que nos tiraram e ofenderam. Não há luto que chegue para os olvidar.

A outra frase é, aparentemente, mais fácil de analisar: “A virtude da democracia é que ela colocou limites ao caráter absoluto do poder.”

A dúvida estabelece-se: sabendo isso, todos o sabemos se formos a ver bem, porque é que alguns de nós querem oferecer o poder aos que o querem exercer com a ditadura do absolutismo, negando a Democracia, a única forma capaz de afastar os extremismos, os negacionismos, os que querem o poder sem limites – e sem a virtude das partilhas?

De todas as minhas leituras retiro alguma coisa. Dou-lhes, às coisas que vou registando, a aparência do sublime – se calhar e apenas para conseguir sobreviver.

 

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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