Peixe fresco por Licínia Quitério Claudino assomou ao patamar dos degraus de mármore que davam acesso ao piso inferior. Havia um número considerável de fregueses na zona do peixe fresco. Um vozear de mulherio percorrendo as bancadas, avaliando tamanhos, preços, grau de frescura. Pareciam muito zangadas as mulheres. Não encontravam o que queriam e já iam na segunda volta. Poucos os homens, calados, dando só uma volta. Os vendedores gritavam, uns para os outros, com vozeirões de sotaque de mar, arrastado. O chefe dos vendedores distribuia ordens a…
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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Guimarães
Guimarães por Licínia Quitério Quando há poucos anos estive mais uma vez em Guimarães, veio-me à lembrança a visita que ali fiz com os meus pais, no tempo em que eu era uma jovem rapariga com a curiosidade pelo mundo a crescer dentro de mim. À vista de novas terras, os meus olhos arregalavam-se e os ouvidos ficavam alerta para outros falares. Ali ia eu de novo, muitos anos volvidos, no comboio que me levava pelo vale do Ave, lindíssimo de verdes e de águas e de sombras,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O Cão
O Cão por Licínia Quitério Morreu, o cão. Nos seus anos de ser cão, quase duas décadas deviam ter passado. Agora a dona não traz as duas voltas da trela acrescentadas às pulseiras várias e coloridas. Tem mais simetria no andar, mais disponibilidade do braço para ajeitar com elegância o chapéu que faz mudar com as estações do ano. Os olhos, escandalosamente azuis, não dizem dos seus anos de dona. Na falta do velho cão que lhe alentava o passo, adianta-se ainda mais ao dono que envelhece largamente…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Era tão engraçado
Era tão engraçado por Licínia Quitério Dele se pode dizer que não devia ter morrido tão cedo. Mal tinha passado do meio século quando a doença se mostrou, óbvia, ameaçadora. Não tinha paciência para estar doente. “Que má altura para ficar doente!”, lastimava-se. “É que não tenho tempo.”. E logo agora que a Isa acedera finalmente a casar-se com ele. Era jovem, banal e sentiu a atracção daquele homenzarrão sábio e carinhoso que lhe dispensava ternuras de pai e lhe acenava com promessas de amante que nunca tivera.…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O comboio descendente
O comboio descendente por Licínia Quitério A mulher pediu ajuda para elevar a mala pesada até ao lugar que a esperava, acima dos bancos. Era ainda uma mulher ainda jovem, com um farto cabelo negro enrolado sobre a nuca. Devia ser viajante habitual, sabedora de comboios e do que eles podem oferecer. Tirou os sapatos e colocou os pés já um tanto deformados sobre o pedal de descanso. Armou o tabuleiro que o banco da frente lhe oferecia e nele colocou o tablet em posição adequada para leitura.…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Verão 75
Verão 75 por Licínia Quitério Um homem-menino chegado da soleira de outro tempo abriu um sorriso nos olhos de Clarisse. Não se lembra do nome dele. Dirá que se chama Fernando. Tinha fome e tinha medo e levaram-no ao encontro de outras fomes, de outros medos. Era uma vez uma aldeia perdida, lá no fundo, passado que fosse o leito seco do ribeiro. Clarisse no declive da serra, rodeada de canções de luta e sobressalto, levando nos braços a maior esperança do mundo. Fernando espantava os medos acariciando…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A Viagem
A Viagem por Licínia Quitério Há quanto tempo morrera o que chamara A Viagem? Sabia exactamente o dia, a hora. Quatro da tarde, o sol perigoso, o abrigo do guarda-sol de riscas rosa e laranja. A mão na testa suada dele, em toque leve, hesitante. Vamos então? Posso marcar com a agência? Sentiu-lhe o estremecimento. Total, da raíz à copa. Disse não, já marquei. Levantou-se, pegou na toalha, nervoso. Sabes com quem vou. E, quase num grito, é melhor acabarmos com isto de vez. Foi no dia de…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Precária
Precária por Licínia Quitério Aquele habitual erro de cálculo. Mais curta do que o previsto a distância entre o bordo exterior do dedo mínimo e o bojo do copo na beira da mesa. Foi por isso que o homem pegou na pá e na vassoura e lhe disse que não havia azar, não se preocupasse. A incomodidade dela em evidência no apertar das mãos, no olhar em círculos pela sala. Ele a varrer os cacos, alguns em viagem desmedida até outras mesas e a dizer em jeito de…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Lá isso…
Lá isso… por Licínia Quitério Era uma vez um senhor doutor advogado, assim por extenso chamado, que nessa altura os causídicos eram poucos, respeitados, afamados, e supinamente necessários, já que a eles tinham de recorrer pobres e ricos, por mor de frequentes demandas. As razões dos pleitos, as mais vulgares, eram a má vizinhança de terras, a disputada serventia de águas, a questionada partilha de heranças, enfim, aquelas razões que, desde o princípio dos tempos, levaram os homens a guerrear e a mostrar a ferocidade maior de que…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Os tostões
Os tostões por Licínia Quitério Começo por dizer da caixinha vermelha, que fora do pó-de-arroz da minha mãe, com chinesas de sombrinhas abertas pintadas a negro. Gostava eu daquelas almofadas que elas traziam às costas e dos sapatos com duas tiras entre os dedos. A caixinha, que já não era de pó-de-arroz, servia de mealheiro das moedas pequeninas, escuras. Chamavam-se tostões e faziam parte da “demasia” que os meninos que faziam os recados entregavam à minha mãe. Ao fim da semana, já as demasias eram um montinho que…
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