O homem do acordeão por Licínia Quitério O homem do acordeão toca e do seu corpo brota uma dança que lhe põe na cintura requebros de juventude. Enquanto toca, anda para cá, para lá, os pés marcando compassos de antigas músicas. Abrindo e fechando os braços, abrindo e fechando o acordeão, abrindo e fechando o coração, a grande alegria a inundar-lhe o sorriso, os olhos vestidos de doçura, o homem do acordeão ressuscita rituais de sedução guardados na memória e que o corpo insiste em ofertar. É belo…
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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A senhora dos peixes
A senhora dos peixes por Licínia Quitério Era nas tardes de calor que a podiam ver sentada na beira do lago, um chapéu de palha a cobrir-lhe a cabeça, uma perna pendente a baloiçar devagarinho, as mãos sobre o colo, num abandono de sesta. Indiferente a quem passava, atenta aos peixes, nos seus movimentos rápidos, de sentidos imprevisíveis, provocando pequenas turbulências, remoinhos, ondulações, desassossegos na mansidão da água. Um movimento contínuo, silencioso, fresco. Via-os crescer, encorpar nas suas peles esverdeadas, ou douradas, ou negras, ou vermelhas, ou feitas…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Sonho de Clarisse
Sonho de Clarisse por Licínia Quitério As ameixas e as abelhas, juntas em cada Verão. A passividade dos frutos em oferenda ao zumbido das asas. Acontecia a doçura antes do mel, como é preciso acontecer no amor. Nas folhas do agrião triunfava o verde, em louvor da água escorrida do tanque. Lugar de regas, de lavagens e de banhos de alegria das crianças, em miragens de mar. Clarisse passeia-se de novo no quintal da casa que dantes lhe falavam. Campo de engenhos e de esforços de mulher com…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O senhor Leocádio
O senhor Leocádio por Licínia Quitério Quem havia de dizer que o senhor Leocádio também existe fora do seu sítio de pacotes, latas, frascos, caixas, todos de variados feitios, tamanhos, cores, a cada um o seu rótulo, o seu logótipo, o seu apelo mudo ao cliente, ao potencial cliente, ao curioso visitante, na oferta das bolachas, dos cogumelos, do atum, da margarina, do fiambre. Há que referir ainda os produtos frescos, e os secos, avulsos nas caixas, nas tulhas, para o cliente, o potencial cliente, avaliar a cor, a frescura,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Notícias do Inverno
Notícias do Inverno por Licínia Quitério Na penumbra da sala, veio-lhe à memória o primeiro nome dele. E logo os apelidos, três. O rosto magro, os olhos a trespassarem-lhe o corpo, os dedos esguios num toque suave na cintura, a fazerem-na estremecer, a voz ao ouvido, enquanto dançavam, numa saborosa clandestinidade. Foi há tanto tempo. Passaram décadas, cada um seguiu a sua vida, raras vezes tornaram a ver-se, um telefonema por uma morte, outro por outra morte. Foram somando mortes e filhos e netos. Da última vez que se viram,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Notícias do Inverno
Notícias do Inverno por Licínia Quitério Venho dar-te notícias do Inverno por aqui. Presumo que para ti continuem a não ter grande importância as estações do ano, já que passas por elas sem as nomeares, nem as aplaudires, nem as exaltares. Adivinho que continuas com o botão da camisa aberto, aquele junto ao pescoço, só um, que no Verão abres dois e assim contentas as pessoas que se admiram de não mudares de vestimenta. Eu não, eu continuo a ser a rapariga que tem muito frio, muito calor, que fala…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A roleta russa
A roleta russa por Licínia Quitério Pedi-lhe que tapasse o rosto antes de entrar. Ele pôs a máscara e descalçou os sapatos. Como no Japão, disse, e a expressão desanuviou a tristeza que tentava apoderar-se da sala, de nós. Disse-lhe para se sentar e eu sentei-me no sofá mais afastado do dele. Conversámos muito, como dantes, e eu soube que ele se ria pelo som que atravessava a máscara e pelos movimentos desacertados do corpo. Falámos de amigos, de amigos de amigos, com quem não voltámos a estar. Passaram a…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – É DO TALHO?
É DO TALHO? por Licínia Quitério É do talho? Não, minha senhora, é engano. Mas eu queria ligar para o talho. Pois, mas enganou-se no número. Passe bem. É do talho? Não, não é do talho, a senhora ligou de novo para o número errado. Do outro lado, a mesma voz de mulher que me pareceu ser de idade avançada. Oitenta e cinco, segundo me disse minutos depois. Ela lamenta-se, ai, mas o que é que eu fiz, mas não é do talho, oh desculpe, a senhora donde é. Fiquei…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A MULHER
A MULHER por Licínia Quitério A mulher diz, sente-se, coma, aqui come-se o que vem para a mesa, quando é que cortas esse cabelo. A mulher não pergunta se queremos mais, mas percebe-se que podemos servir-nos as vezes que quisermos. A mulher não diz, obrigada, mas a gente sabe que gosta de mimos. A mulher ameaça, olha que levas, mas a mão suspende o gesto, a saber-se obedecida. A mulher tem opinião, declara-a, defende-a, com a fala grossa e o corpo adiantado. A mulher gosta de ser ouvida a desfiar…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Sempre aparece alguém
Sempre aparece alguém por Licínia Quitério Sempre aparece alguém, como ontem, que me quer contar uma história, a sua história, a história que não é a sua, mas que quer mostrar. Uma pessoa sem uma história digna de ser contada não chega a ser uma pessoa que valha a pena ser ouvida, mesmo que seja em faz de conta, como eu faço, a espreitar as entrelinhas, no que não diz mas eu oiço, no que desdiz e eu não oiço. Mudou muito aquela mulher que ontem veio sentar-se à…
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