O Cão por Licínia Quitério Morreu, o cão. Nos seus anos de ser cão, quase duas décadas deviam ter passado. Agora a dona não traz as duas voltas da trela acrescentadas às pulseiras várias e coloridas. Tem mais simetria no andar, mais disponibilidade do braço para ajeitar com elegância o chapéu que faz mudar com as estações do ano. Os olhos, escandalosamente azuis, não dizem dos seus anos de dona. Na falta do velho cão que lhe alentava o passo, adianta-se ainda mais ao dono que envelhece largamente…
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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Era tão engraçado
Era tão engraçado por Licínia Quitério Dele se pode dizer que não devia ter morrido tão cedo. Mal tinha passado do meio século quando a doença se mostrou, óbvia, ameaçadora. Não tinha paciência para estar doente. “Que má altura para ficar doente!”, lastimava-se. “É que não tenho tempo.”. E logo agora que a Isa acedera finalmente a casar-se com ele. Era jovem, banal e sentiu a atracção daquele homenzarrão sábio e carinhoso que lhe dispensava ternuras de pai e lhe acenava com promessas de amante que nunca tivera.…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O comboio descendente
O comboio descendente por Licínia Quitério A mulher pediu ajuda para elevar a mala pesada até ao lugar que a esperava, acima dos bancos. Era ainda uma mulher ainda jovem, com um farto cabelo negro enrolado sobre a nuca. Devia ser viajante habitual, sabedora de comboios e do que eles podem oferecer. Tirou os sapatos e colocou os pés já um tanto deformados sobre o pedal de descanso. Armou o tabuleiro que o banco da frente lhe oferecia e nele colocou o tablet em posição adequada para leitura.…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Verão 75
Verão 75 por Licínia Quitério Um homem-menino chegado da soleira de outro tempo abriu um sorriso nos olhos de Clarisse. Não se lembra do nome dele. Dirá que se chama Fernando. Tinha fome e tinha medo e levaram-no ao encontro de outras fomes, de outros medos. Era uma vez uma aldeia perdida, lá no fundo, passado que fosse o leito seco do ribeiro. Clarisse no declive da serra, rodeada de canções de luta e sobressalto, levando nos braços a maior esperança do mundo. Fernando espantava os medos acariciando…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A Viagem
A Viagem por Licínia Quitério Há quanto tempo morrera o que chamara A Viagem? Sabia exactamente o dia, a hora. Quatro da tarde, o sol perigoso, o abrigo do guarda-sol de riscas rosa e laranja. A mão na testa suada dele, em toque leve, hesitante. Vamos então? Posso marcar com a agência? Sentiu-lhe o estremecimento. Total, da raíz à copa. Disse não, já marquei. Levantou-se, pegou na toalha, nervoso. Sabes com quem vou. E, quase num grito, é melhor acabarmos com isto de vez. Foi no dia de…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Precária
Precária por Licínia Quitério Aquele habitual erro de cálculo. Mais curta do que o previsto a distância entre o bordo exterior do dedo mínimo e o bojo do copo na beira da mesa. Foi por isso que o homem pegou na pá e na vassoura e lhe disse que não havia azar, não se preocupasse. A incomodidade dela em evidência no apertar das mãos, no olhar em círculos pela sala. Ele a varrer os cacos, alguns em viagem desmedida até outras mesas e a dizer em jeito de…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Lá isso…
Lá isso… por Licínia Quitério Era uma vez um senhor doutor advogado, assim por extenso chamado, que nessa altura os causídicos eram poucos, respeitados, afamados, e supinamente necessários, já que a eles tinham de recorrer pobres e ricos, por mor de frequentes demandas. As razões dos pleitos, as mais vulgares, eram a má vizinhança de terras, a disputada serventia de águas, a questionada partilha de heranças, enfim, aquelas razões que, desde o princípio dos tempos, levaram os homens a guerrear e a mostrar a ferocidade maior de que…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Os tostões
Os tostões por Licínia Quitério Começo por dizer da caixinha vermelha, que fora do pó-de-arroz da minha mãe, com chinesas de sombrinhas abertas pintadas a negro. Gostava eu daquelas almofadas que elas traziam às costas e dos sapatos com duas tiras entre os dedos. A caixinha, que já não era de pó-de-arroz, servia de mealheiro das moedas pequeninas, escuras. Chamavam-se tostões e faziam parte da “demasia” que os meninos que faziam os recados entregavam à minha mãe. Ao fim da semana, já as demasias eram um montinho que…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Uma avaria
Uma avaria por Licínia Quitério – Uma avaria grande. Tem de ir um camião buscar uma peça. Previsões não dão. Foi esse o dia em que falaram a dois, a três, a quantos iam chegando. Os que passavam falavam com quem se encostava às ombreiras. Do lado de fora da porta, como nunca se vira. As casas iam arrefecendo e felizmente cá fora havia sol. Melhor ficar por ali, num remanso forçado, a desatar as falas tão guardadas que nem se sabia que existiam. Quem havia de dizer…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Uma Aventura
Uma Aventura por Licínia Quitério Era Inverno e eu perdia-me no jardim-floresta com as miúdas. Levava-as (levavam-me?) a uma aventura, daquelas dos livros que eu lhes comprava. Nesse tempo, a manta morta entre as árvores era o país dos duendes, verdinhos, de grandes gorros e orelhas que neles não cabiam. Tínhamos cuidados para não os pisar. As miúdas levantavam os pezitos e às vezes estatelavam-se e magoavam os joelhos. Nada de importante, nada de choros. Uma aventura é uma aventura e se uma silva nos arranha as pernas…
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