Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Coisas velhas

  De ontem e de hoje – Coisas velhas por Licínia Quitério Nas casas sempre habitam coisas velhas, antigas, gastas, feridas pelo tempo, pela desatenção, preteridas pelas novas recém-chegadas, com outro brilho, outra utilidade, diferentes no desenho e na cor. Nas mudanças de casa, nas mudanças de gente, escaparam à devora de usurários e ao lugar dos lixos. Foram-lhes concedidos sótãos esconsos, gavetas, arcas de memórias. Quando chegaram até mim, procurei-lhes as feridas, tratei-as como pude, fui espreitando as marcas que me contassem histórias de outro tempo, de outra gente.…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O PBX

  De ontem e de hoje – O PBX por Licínia Quitério A miúda gostava das tardes quentes de verão na aldeia quando a tia Arminda, encostada a porta da rua da saleta, limpava com um lencinho as pérolas de suor da testa e do decote e se sentava frente ao aparelho do PBX para tirar cavilhas, meter cavilhas, baixar patilhas, levantar patilhas, com o olhinho atento às luzinhas que acendiam ou apagavam. E a voz era doce, delicada, ao dizer, Boa tarde Torres, Dê-me troncas, Ó Torres dê-me o…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Falência

  De ontem e de hoje – Falência por Licínia Quitério Com voz seca e bem timbrada, a juíza proferiu, nos termos da lei, a sentença: FALÊNCIA. Logo fechou os livros, tirou os óculos e arredou ligeiramente a cadeira para melhor se levantar. Se fosse num filme, teria surgido a palavra FIM sobreposta a uma última imagem definitivamente paralisada. A assistência engoliu por breves segundos a palavra sentenciadora, há tanto esperada quanto temida, que sobre eles acabava de desabar. Os homens e mulheres, de cabeleiras maioritariamente acinzentadas, levantaram-se. Lentamente, sem…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O banquinho

  De ontem e de hoje – O banquinho por Licínia Quitério Eu era pequena, franzina, nos meus oito anos, e o banquinho rectangular, de duas abas fixas, um buraquinho no tampo, dava um jeitão para eu chegar ao parapeito da janela e apoiar os cotovelos. Eu sabia muito pouco da vida que ainda em mim era tão curta, mas lia, sabia ler desde os quatro anos, e lia o que aparecia em casa: O Primeiro de Janeiro ao fim de semana, A República diariamente, chegada pelo correio, com o…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Dona Sara

  De ontem e de hoje – Dona Sara por Licínia Quitério A senhora tem os rituais que os oitenta e tantos anos lhe exigem para poder abrir os dias e pensar, estou só mas estou viva, graças a Deus. Aguenta-a aquele mau génio que os outros referem quando dizem, sempre foi uma peste, e desfiam pecados passados de dona Sara. Sabem lá eles do que falam, de quem falam, só ela sabe de si, de quanto amou, quanto odiou, quanto chorou, quanto lutou para tratar dos velhos lá de…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A Aparição

  A Aparição por Licínia Quitério   A gente vai ali e já vem, o que tem a fazer não é coisa de levar mais de uma hora e, depois de tudo feito, senta-se um bocado a tomar um café, a cumprimentar este e aquela, a sossegar, a olhar a rua, sossegada rua de bairro sossegado de sossegada terra. Do lado de lá, envolta no sossego, a aparição de um homem velho, alto, muito magro, de barbas brancas a excederem a máscara que a pandemia trouxe. Era o que nos…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Os filhos

  Os filhos por Licínia Quitério   A cabeleireira tem um filho que não quer comer. Não quer comer ou não quer que a mãe queira que ele coma. Só quer o tablet que o tio lhe ofereceu para ver os bonecos tão feios, mas de que ele gosta muito. É tão engraçado ver como ele já sabe mexer naquilo com os dedinhos gordinhos a deslizarem para cá para lá e os bonecos horríveis a fazerem caretas, a gritarem. O que vale é que ele lá vai mastigando enquanto joga…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Seria mesmo ele?

  Seria mesmo ele? por Licínia Quitério   Há meia dúzia de anos, num transporte público, sentei-me ao acaso ao lado de um desconhecido. Puxei pela sandes de queijo e comecei a comer com avidez, porque tinha estado em jejum de obrigação. Já a sandes se aproximava do fim, quando o sujeito se inclina para mim, me toca ao de leve com o ombro e exclama, isso é que é larica, e ri-se. Afastei-me, olhei-lhe o perfil e com cara de poucos amigos disse, pois. O sujeito continuou a rir,…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O meu computador

  O meu computador por Licínia Quitério   Desbravar um computador, nos finais do século vinte, teve o seu quê de aventura para quem como eu aprendeu a escrever com caneta de pau, aparo de folha molhado em tinteiro de vidro, salpicos de tinta na folha de papel, no bibe e no chão. Aventura talvez comparável a ser largado de noite numa cidade grande aonde vamos pela primeira vez. Tudo o que sabemos é que ela existe, está ali à nossa volta, mas não sabemos por onde seguir, nem o…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – No Tem-Tudo

  No Tem-Tudo por Licínia Quitério   – Traz lugar? Pergunta o homúnculo por detrás do balcão, por debaixo dos capachos e dos mata-moscas pendentes do tecto, entalado entre os grandes frascos de rebuçados e a pirâmide multicolor dos alguidares de plástico. Ao silêncio de incompreensão do cliente, repete, aparentemente agastado: – Traz lugar ou precisa de um saco? É que temos poucos. Assim se fala na Drogaria Moderna, de João Cipriano (Herd.os), Lda, mais conhecida no bairro pelo Tem-Tudo. Fica numa dobra de velha Calçada de Lisboa, sinuosa como…

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