Crónicas de Jorge C Ferreira | Perder o Norte

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Perder o Norte, de tanto Norte, de tão a Norte. O Desnorte. O Norte de todos os Nortes. Subir sempre mais. Procurar o lugar da felicidade inteira. Saborear o Sol que nunca se põe, o gelo que teima em não se derreter, regressar e aceitar o abraço de um urso que nos quer amar.

Encontrar uma Igreja. Descalçar-me para entrar. O sossego no meio de muita gente. Ficar perdido no meio do silêncio.   Não saber de nada. Tento ouvir as antigas orações em latim. Esqueço-me do tempo.

Ficar criatura isolada. Vir para o gelo e não saber de ninguém. Procurar uma cabana sóbria, mas quente. Procurar o animal que nos consegue transportar até ao outro lado do Mundo.

Caminhar sem destino e encontrar o resgaste numa curva da vida. A inesperada aventureira que nos salva, mesmo quando já estamos quase a desistir.

As louras criaturas. A pele branca. As sardas. A vida no limite. Cristalinas como as águas. Um trenó que alguns cães levam para outras fronteiras. Caminhos trilhados por gente muito antiga. Ultrapassar o inultrapassável e poder gritar e ouvir a resposta num eco multiplicado por mil.

Tentar voltar ao início de tudo. Tentar escrever um poema. Um pau a riscar o gelo. Uma gravação perene. Porque um poema nunca está acabado. A Poesia é uma luta contínua.

O dia sobre o dia. Sempre a claridade. Sempre a luz da estrela maior. Tudo assim até um dia chegar a noite grande, demasiado grande. Até a neve ser mais alta que muitas coisas altas e os ursos descerem à cidade sem medo das carabinas que os homens carregam ao ombro.

Não consigo ver a loura que me resgatou armada. Só a consigo ver amada. Mas esta terra é dura. Comem-se muitos chocolates, combate-se a depressão e espera-se como uma bênção o primeiro sinal do Sol. Nesse dia toda a gente está na escadaria perto da tal Igreja. As crianças soltam balões. Cantam-se cânticos de toda a vida e reaparece o outro modo de viver.

Tanto que se aprende quando as pessoas que encontramos nos querem ensinar a sua vida, quando viajamos para conhecer as pessoas. É tão importante conhecer o outro, saber das diferenças, das suas razões e motivos. Somos nós e o nosso avesso.

Os ursos regressam à sua anterior morada. Não sei se levam saudades. O gelo vai-se derretendo. Deixa de nevar. Mudam-se hábitos e costumes, embora a vida continue a ser dura. A luz inunda as casas e a tez branca das mulheres de tranças e sardas.

Hoje que estamos sempre contactáveis ao alcance de um clique a vida tomou uma aparência de facilidade que muitas vezes é contrariada por certas realidades. Temos de as conhecer.

Há quem se esconda de tudo para se reencontrar. Há quem se reencontre no meio das maiores dificuldades. O tempo escasseia. É tempo de voltar ao mar. Esperam-nos dois dias de navegação. Não sei se será tempo suficiente para pôr as ideias em ordem. Tanta diferença. Tudo tão claro e afinal tanta sombra! Vamos embarcar.

«Por onde tu andaste! Desta vez tive muito medo. Tu não sossegas!»

Voz de Isaurinda.

«Só te falta dizer: – Já tens idade para ter juízo!»

Respondo.

«E olha que é verdade, mas acho que nunca vais ter.»

De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Agosto/2018(174)

 

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23 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | Perder o Norte”

  1. Natalia Rodrigues (melguinha)

    Deliciei-me com esta crònica, Jorge! Gosto de viajar nas pessoas e esta viajem em si foi linda! Abreijos, estimado Jorge.

  2. Madalena Pereira

    Que belo texto! Obrigada, querido amigo, Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Grato pelo seu comentário. Abraço.

  3. Eulália Pereira

    Que bom reencontro. Crónica maravilhosa. A Isaurinda sempre atenta!
    Bom regresso ao mar! Mar azul. Calmo. Imenso.
    Para lá ficam as montanhas geladas onde dia e noite se confundem.
    Obrigada.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Há sempre um ir e um regressar. As ondas da vida. Que bom o seu comentário. Abraço.

  4. Ana Maria Dimas

    Que belo texto! Mesmo a calhar nesta madrugada quente, aqui, num lugar das terras do Sul. Senti o frio das noites compridas do Norte misturado com o calor das suas gentes bonitas. Hoje queria estar aí! Queria sentir a frescura da noite e o abraço aconchegante do urso.
    Obrigada, Jorge. Quando regressar traga-me um pouco dessa paisagem gelada e num saquinho bem fechado, uns pózinhos das cores da aurora boreal… viu-a?

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana Maria. São memórias que ficaram. Vidas que não se esquecem. Noites brancas. Abraço

  5. Manuela Moniz

    Adorei o que acabei de ler, Jorge, como sempre. Porque, sempre que te leio deixo-me levar pela beleza das tuas palavras, pelo sonho que me liga a esse mundo lindo onde te vais encontrando e reencontrando no “outro” . É esse, certamente, o mundo para que fomos feitos.
    Encantada com a leitura desta crónica , vou de imediato espreitar a estrela maior que vislumbro através da vidraça.
    Obrigada, querido amigo. Um beijo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela, minha amiga. Tão bom encontrar-te aqui. Que belas palavras. Outro beijo para ti.

  6. Branca Maria Ruas

    Só se aprende com os outros quem os sabe observar. Só se conhece o outro quem sabe ouvir. E essa é a forma que tens de viajar. Não são só os lugares. São as pessoas. E nesses encontros te reencontras. E nessas descobertas te descobres. Sabes dar e receber. Viver é isso!
    Obrigada pela tua escrita.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Ser um bom ouvidor é essencial. O mais importante são as gentes, os usos e costumes. Abraço muito amigo

  7. Célia M Cavaco

    Que bom é este reencontro de palavras, contos e viagens contadas.Que ouvir o eco da Isaurinda,que bom este regresso meu bom amigo.Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Que bom ler-te aqui. Abraço muito amigo.

  8. Maria da Conceição Martins

    Jorge que bom lê-lo outra vez. Vá escrevendo que eu gosto de o ler. Um abraço e até para a semana.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Maria da Conceição. Irei tentar. Espero não a desiludir. Abraço amigo.

  9. Teles Ivone Teles

    Querido Jorge, meu amigo /irmão, não escreverei muito porque o que quero é ler-te e reler-te com o teu espírito de sempre. A jovem loira de sardas, provavelmente nada e criada nessas terras frias, foi uma fada sim, porque há fadas que vêm disfarçadas de gente, mas sempre gente boa. Vamos aprender uns com os outros a viver em amizade e ternura. Somos nós e as nossas fragilidades, somos nós e o nosso avesso. Vamos dar a volta à vida com o que querem abater-nos. Mostrarmos que quem lutou no fascismo também luta contra futilidades de quem nos quer derrotar. Quem sabe se as mulheres de pele transparente, tranças e sardas nos podem ajudar? Diz à Isaurinda que estou com ela e contigo, porque também acho que nunca irás ter juízo. Beijinhos ternos meu amigo/irmão..

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Ivone. Sempre um texto delicioso. “Chegaremos ao fim da estrada.” Abraço muito amigo, minha amiga/irmã

  10. Cristina Ferreira

    Querido amigo, vou começar pelo que disse a nossa querida Isaurinda. Tal como ela também eu senti medo desta vez, não da mesma forma, certamente, pois ela conhece-te melhor que ninguém, mas porque apesar de nos teres avisado do tempo que irias te ausentar do jornal e mesmo sabendo nós, leitores e admiradores, o amor que sentes ao mar , ainda assim Jorge, foi realmente muito tempo sem termos noticias tuas. Sem saber quando iria chegar exactamente este momento . O momento do reencontro com as tuas belas e mágicas palavras. A tua sempre bem vinda sabedoria e lucidez. Bem regressado sejas.
    Quanto à riqueza que nos contas na tua belíssima crónica , posso já garantir que se nunca tiver a possibilidade de desfrutar a magia desse fenómeno, que é o Sol da meia-noite e dos cânticos das suas brancas gentes, poderei sempre recordar com uma emocionada ternura esta tua emocionante e sensível crónica.
    Sei que já vai longo este comentário, peço desculpa por isso, mas não posso deixar de referir que , se tu nos descreves nesta forma tão poética “a luz da estrela maior”, a tez branca das mulheres de tranças e sardas , só te posso agradecer e garantir que também tu lá deixaste na tua forma de Luz , a tua presença e sensibilidade em quem contigo teve a sorte de privar. Bem hajas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Cristina. Por vezes necessito de um outro tempo. Abraço muito amigo.

  11. Amigo Jorge, vou atrás da tua escrita. Vejo e percorro lugares por onde os meus pés não andaram nem os olhos tiveram o prazer de viajar. De noite ou de dia.
    Grata por trazeres os sentires dessas terras onde os povos têm ‘mil’ nomes para o branco.
    Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Lília. O branco uma ausência cheia de tudo. Somos o branco. Abraço muito amigo

      1. Abraço, Jorge.
        Sim, somos o branco, a cor que contem todas por dentro. A que tem paz se quisermos.

        1. Jorge C Ferreira

          Obrigado Lília. De branco nos entregamos!

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