Pecados e Imperfeições
A impossível perfeição. Os improváveis sabores. As imprecações e as suas várias direcções. O delírio do belo. Esse belo que apesar de provocar a loucura é imperfeito. Uma sinfonia por acabar. A incompleta cantata. O imperfeito som. Um órgão desafinado. Uma lareira sem chama.
– Maria anda de rastos em busca do perdão. Um perdão que a imperfeição lhe nega. Maria esfolada, ferida, perdida, o cabelo desgrenhado, as lágrimas de pedra, a eterna busca. Alguém desfalece ao fim da passagem do martírio. Levam-no, não vamos saber mais dele. Todos os seus pecados arrumados numa pequena caixa. O fim do caminho. –
Conhecer o prazer do imperfeito – discutiam três amigos – aceitar a inexistência da perfeição. Estar perto de um todo que não existe. Saber tão pouco do nada. Quem nos tira deste vai e vem do não saber. Existir. Nascer imperfeito. Morrer carregado de imperfeição. A dificuldade de nos aconchegarem no caixão. A malvada da marreca. Um exército de inválidos.
– Maria continua, agora de joelhos, a percorrer a passadeira do sacrifício. Já lhe disseram que eram desnecessárias tais penitências. Mas Maria não desiste. Uns chamam-lhe fé. Outros teimosia. Outros calam. Maria segue. Arrasta um cansaço alagado num suor que ninguém bendiz. Um rasto de sacrifício. Já nem uma luz vislumbra. –
Os diversos graus das imperfeições. Há quem lhe atribua percentagens. Percentagens sempre erradas, porque são atribuídas por gente imperfeita. As peças em falta. Os desequilíbrios, as aflitas incontinências. A tudo alguém atribuiu um grau, uma agonia sem razão. Um faz de conta.
– Maria continua o seu imenso suplício. Ninguém a consegue parar. Já perdeu a conta ao percurso feito. Espirra o sangue dos seus joelhos, das suas mãos. Cresce uma dor que, de tão grande, deixa de sentir. Que procura Maria? Já nem ela sabe. Já esqueceu. –
Chamam de imperfeitas umas determinadas capelas. Para tal apodo dão a justificação de que nunca foram terminadas. Como se, o tivessem sido, as fizesse perfeitas. Nada mais errado. Porque nada é perfeito. Há sempre quem aponte um defeito à “perfeição”. Uma falha, uma pedra com coloração diferente, uma assimetria desajustada. Será sempre assim: onde uns vêem imperfeição, outros vêem genialidade. Mas nós somos assim, gostamos de perseguir a utopia. Ainda bem. Assim devemos continuar.
– Maria está cada vez mais cansada. As feridas multiplicam-se. «Os pecados são muitos.» – Diz ela -. Não será este arrastar do corpo mais um? Maria benze-se, persigna-se, segue o caminho da cruz. Há quem lhe ofereça água. Maria rejeita. Maria teima em continuar o caminho do sofrimento. O Pecado final –
Aprender a amar as imperfeições. Os defeitos, as teimosias, a repetida conversa. Ser capaz de conhecer os seus erros. Lembrar uma tia velha, tão velha que se tinha esquecido de quando tinha nascido. Lembrar as sua imprecações. As transitivas e as intransitivas. As súplicas e as pragas. Rogar ou amaldiçoar. A velha mais imperfeita que alguma vez conheci e, no entanto, um poder imenso. Coisas de deuses e demónios. Os medos acumulados. A pia da água benta vazia.
– Maria desfaleceu…jazem pelo chão um suor de pecados, um rosário e um escapulário. Despojos de um percurso. –
«Que estória danada contas hoje! Isso é coisa de meter medo. Credo, abrenúncio…»
Fala de Isaurinda enquanto se benze.
«Estórias da vida. Vidas entrecortadas. Tudo possível de acontecer.»
Respondo.
«Conversas, coisas tão bonitas para falar…»
De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Fev/2018(157)
Imperfeições. Feridas. Dores. Morte.
As certezas da vida. Paradoxalmente, as dificuldades maiores. Juízes não funcionam bem em causa própria, assim como santos da casa não fazem milagres.
Um abraço, Jorge.
Há sempre quem aponte uma imperfeição ao que se julga perfeito. Texto excelente muito bem elaborado. Gostei muito obrigada.
Obrigado Isabel. A perfeição é uma utopa.somos frutos da imperfeição. Abraço.
Os padrões da perfeição e do belo tão relativos, tão variáveis de época para época, de culturas, religiões, interesses económicos…
Não acredito na perfeição, nem em pecados.
Maria, mulher, carrega os pecados, desde o pecado original.
Crónica muito bem elaborada.
Obrigado Fernanda. Tão lúcido este seu comentário. Depois há o que vai para além da realidade. O domínio do sonho. Abraço.
Hoje em dia mais que nunca há um conceito de perfeição no que se trata de beleza corporal ; Ginásios, Fitness, Holmes Place, tudo em nome da saúde e o bem parecer. Empregos de topo, uma vida perfeita. Tudo uma utopia. A imperfeição faz parte da vida , faz-nos aprender e crescer.. Um texto perfeito , com um quadro pintado de cores singelas de Maria que esconde suas imperfeições , alegando a pecados. Bela crónica, como sempre. Um abraço, Mestre Jorge.
Obrigado Ana. Sim, minha amiga, esse é outro lado da busca da inatingível perfeição. Grato pelas suas palavras. Abraço.
Obrigado Ana. Sim, minha amiga, esse é outro lado da busca da inatingível perfeição. Grato pelas suas palavras. Abraço.
Não imagino o que seja a perfeição. Uma chatice, certamente que sim. Talvez uma utopia, uma ilusão em que muita gente se deixa enganar… não sei. Penso que a imperfeição está inerente à condição humana, e eu como tal sou assumidamente imperfeita e sem remissão.
Abraço grande e amigo.
Obrigado Manuela. Imperfeitos somos, imperfeitos nos assumimos e queremos. Tudo o resto é, como dizes, pura utopia. Abraço
O jovem Michelangelo aproximou-se ao máximo à perfeição , na belíssima escultura de David.
Esta crónica, para mim, é uma obra de arte.
Obrigada. Bem hajas .
Obrigado Cristina. Há quem busque o belo em toda a sua imperfeição. Porque há muita beleza na imperfeição. Obrigado pela tua generosidade. Abraço.
Seres perfeitos?! Não acredito na perfeição.
Há quem busque incessantemente a perfeição e se esqueça de viver.
Eu me assumo” não- perfeita”, mas chamo-me Maria.
Conversas tão bonitas para falar/contar ( parafraseando a Isaurinda.
Boa semana,amigo.
Obrigado Idalina. Certo, felizmente somos seres imperfeitos. Assim seremos. Abraço.
Li algures que a perfeição só existe nos catálogos. Será? Passamos muito tempo da nossa vida a pensar no que é perfeito. Não queremos deixar nada inacabado. Pessoas perfeitas, pais, filhos, maridos, casas, trabalho, colegas, amigos,corpos, vidas, etc, etc, etc. chegamos ao fim da vida ou perto do fim e descobrimos que a perfeição é banal, uma utopia. Não vale a pena escondermos as imperfeições, porque, mesmo que mais ninguém saiba, sei eu que determinado aspecto que não quero revelar é mesmo imperfeito. Não a vejo como uma culpa que vou ter que espiar nem que pagar com penitências. Não sou perfeita em coisa nenhuma e não pretendo ser exposta num museu como peça rara. Sou uma pessoa e por isso conjugo o verbo no tempo imperfeito…que é o meu. Abraço.
Obrigado Fernanda. Somos nós, exemplos acabados das peças imperfeitas. Tu da vida sabes quase tudo. Por osso escreves assim. Abraço
Os pecados em que não acredito, as inúmeras imperfeições contra as quais luto. Mas como dizes e bem, não adianta procurar a perfeição, porque não existe. Quem a procura tem de a manter por perto, mas nunca a encontrará. Talvez ” correr ” atrás da ” loucura do imperfeito “, ” uma lareira sem chama “.
Maria a rastejar para a encontrar. Pelo caminho deixa o seu sangue perdido por um chão de areias e pedras.. Talvez a imperfeição seja um imperativo para ser gente.
Há quem se ache o mais perfeito ser, quem se julgue predestinado para ser o escolhido pelos ” deuses ” de várias religiões. Um Ser único. Julga que é assim, mas nem existe. Ninguém o vê , ninguém o conhece. É invisível para os outros. Só se vê a si próprio.
Maria( uma mulher ) procura o que não existe.” Medos acumulados ” fazem com que deixe os despojos de um seu percurso.Há uma vida que se soltou. Talvez o seu sofrimento a torne mais ” gente “, que nasce, caminha, sofre ou é feliz, mas não tem pecados no caminho.
Vou ter com a Isaurinda para que cuide bem do meu amigo/ irmão, querido Jorge. Resmungando promete que sim. Apanhei o pano que caiu. Vou com ela.
Obrigado Ivone. Tão belo o teu comentário. Tão sábio. Espero que toda a gente o leia. Abraço.
Tem tudo a ver connosco, seres imperfeitos por natureza e dignos de piedade. Somos assim criados na crítica do dizer mal por facilidade de argumentação, ou a dificuldade de dizer bem sem saber porquê. Mas tudo é ignorância sem maldade.
Um abraço, Jorge.
Obrigado Antónoa. Sim, a nossa eterna imperfeição. Ainda bem, digo eu. Abraço
A perfeição de se chamar Maria com as consequentes imperfeições de ser Maria.
Maria, senhora soberana onde a serenidade é pura invenção…
Como sempre,um texto que interpreto de uma maneira muito especial.Um quadro perfeito com cores imperfeitas no rosto dessa Maria.
Abraço meu amigo!
Obrigado Célia. Cada faz do texto o seu texto. Assim se cumpre a sua função. Que bem leste. Abraço.