Crónicas de Jorge C Ferreira | O Caos

O Caos

Procurar o belo no meio do caos. Amar sob as ruínas da maldição. Fazer um filho no ventre da guerra. A carne do desassossego. Uma flor que nasce de um pó infestado de cólera. Um verso escrito com sangue desconhecido. Um poema de dor e sofrimento e uma escrita de letra desenhada com um martirizado  esforço. Uma mão trémula. Um verbo desconhecido. As linhas desalinhavadas num desencontro encontrado.

Saber da virtude imensa da arte. Do seu enorme poder de sedução. Do seu amor pela luz. Uma luz que faz falta na cabeceira da noite. Uma luz que os sombrios dias encobrem. Um piano no meio do nada. Um pianista louco na sua fúria desatada. Uma sonata. Um delírio. De repente dia. Um plúmbeo tecto. Outra escuridão.  Encontrar de novo o desencontrado. Sentir de novo as dores. O sofrimento a abrir os músculos enfraquecidos. A carne esventrada.

Não saber da casa Mãe. Apenas restos de coisas perdidas  que cheiram a ossos conhecidos. Pedras e estilhaços frangalhos de nada. Estilhaços de tudo. O que se odeia e o que se ama. Uma mistura explosiva. Uma nova explosão. As barreiras. Os arames farpados. A proibição de fugir do tormento. As sevícias.

O cabelo hirsuto. O pó e o sangue. Uma mistura que endoidece. Um barulho que continua dentro das cabeças. Um zunido que cansa os ouvidos. Os pentes perdidos. Os espelhos partidos. Despojos de uma fúria assassina. O pão que não chega. A arte da fome.

Um livro esquecido. Algumas páginas a cheirar a morte. Alguns pingos de sangue. Um livro, apesar de tudo. Tentar ler e não conseguir. As linhas a sobreporem-se. Os óculos perdidos. Um esforço sobre-humano. Conseguir decorar duas linhas. Aumentar a biblioteca que se vai construindo num espaço de memória ainda vivo. Tentar apagar outras coisas. Arranjar espaço para o encanto.

Já tudo é destroços. Já os corpos são farrapos de roupa com pele e esqueleto dentro. Apesar de tudo ouvem-se explosões. Mais vidas retalhadas. O chão a ficar semeado de horrores. A vida a descer mais degraus na escala da dignidade. Choram crianças que já nem de si sabem. Crianças sem escola nem brinquedos. Crianças que, de despojos de coisas  indecifráveis, constroem desejos. Lágrimas que lavam um pouco do chão danado que ninguém quer pisar.

Quem sobreviverá de tamanha ignomínia? Que mentes irão sobreviver a tamanha tortura? Como será a vida dos que conseguirem percorrer novos caminhos?

Corpos perdidos caminham por caminhos sem fim. Uma busca incessante do sossego. Do fim dos estrondos que caem de incertos sítios. A vida gasta. A ingratidão que rasga o sentir. As pernas fracas. Os difíceis caminhos. A hipocrisia dos que querem fechar as fronteiras. Um egoísmo que vai acabar por matar o egoísta. Os populismos que têm terrenos férteis para se expandirem nestas sociedades educadas para o individualismo, para a competitividade. Estamos a tempo de mudar o paradigma.

Quem somos nós? Que fazemos para acabar com esta vergonha? Todos temos responsabilidades. Todos não somos demais.

Uma canção. Uma canção cantada a muitas vozes. Avenidas cheias de nós. Esse sonho que vive em mim, que não me larga. Esse sonho que já vivi algumas vezes. Quando se fará sonho cumprido para sempre?

«Hoje, de novo, essa triste realidade! Podes cansar as pessoas.»

Voz de Isaurinda.

«Temos de fazer ouvir a nossa voz. Insistir. Anda tudo muito calado. Parece que não acontece nada.»

Respondo.

«Desta vez dou-te razão. Só falam da bola!»

De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Mar/2018(162)

 

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22 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | O Caos”

  1. Isabel Baião

    Já muito foi dito. Concordo.Assistimos a esta horrorosa realidade sem nada puder fazer. A esperança que vive no nosso dia e que antes nos alimentava para onde foi? Tanta atrocidade. Ninguém pode ficar indiferente viver como nada disto acontecesse. Texto magnífico retratando está triste realidade.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Temos de enfrentar as bestas. Não podemos calar. Abraço

  2. Isabel Soares

    Um texto belo sobre os hediondos crimes e sofrimentos. O cheiro a morte e um desejo de morte. “Todos somos responsáveis”

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Todos e todos devemos fazer ouvir a nossa voz. Abraço

  3. maria fernanda morais aires gonçalves

    Viver esta inquietação e angustia como se os destroços nos rodeassem, vestir a pele. Só em pensamento morro, rastejo como bicho. Agora são os turcos a atacar em grande por outro lado. Que fazer numa terra que parece de ninguém e é de todos. Matam à vez. Quando uns não querem já estão outros desejando.Matar passou a ser uma banalidade! Morrem mulheres, morrem mulheres, crianças, a humanidade em extinção. Só me resta fazer um poema que não sei quando será sobre o amor!
    Abraço para ti que não te calas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Hoje é notícia da morte demais crianças e mulheres que estavam numa escala. Podes ter a certeza que não me calarei. Abraçe.

  4. Isabel Pires

    Que fazer para acabar com esta vergonha? Lutar, continuar a lutar. Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Sim, nunca desistir. Estar sempre pronto para o combte. Abraço.

  5. Cristina

    Tanto e tão bem que nos falas acerca da cruel realidade. A tua forma delicada de falares da dor, do horror, e de tanta injustiça, é reflexo do teu coração sensível e atento. Somos te gratos, por assim nos fazeres reflectir sobre o que está à nossa volta e tantas vezes por egoísmo preferimos viver neste autismo cobarde.
    Permite que me junte a ti nesse teu sonho que não te larga (e que também já algumas vezes vivi ), e de braço dado desçamos as avenidas em busca do sonho cumprido para sempre.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Tudo isto é duro e é necessária coragem para enfrentar os poderes instalados. Se pensarmos no que sofrem os que estão ao alcance das bombas, todo o nosso esforço é uma brincadeira de meninos. Javemos de encher as Abenidas. Abraço

  6. Maria da Conceição Martins

    Olá Jorge:
    A Isaurinda tem razão meu amigo. Andamos todos demasiado calados. Já não reagimos, nem enchemos as avenidas…E a barbárie continua por esse mundo fora. Até para a semana e continue sempre a dar voz aqueles que não a têm.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Maria da Conceição. Temos de gritar. Temos de ser exigentes. Temos de dizer não à hipocrisia. Abraço

  7. Esmeralda Machado

    Gostei muito! Triste, mas é a realidade. Temos que despertar. Um abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Esmeralda. Sim, é tempo de acordar. De dizer aos srs. que são donos da TV que estamos fartos de mixórdias. Abraço.

  8. Célia M Cavaco

    Existe um cansaço extenuado de tanta barbárie,tudo é demais,começam a faltar crianças felizes,as que restam carregam a memória da desgraça.A palavra alegria e felicidade deixou de ter significado,será o mundo às avessas a única lembrança se chegarem à idade adulta.Serão cegos de todas as cores,o seu mundo será a preto e branco.Nós,os observadores da desgraça somos impotentes,as lágrimas,apenas e só alguns saberão de que lado bate o coração.Outros falarão só por piedade fingida,a esse outros desde que tenham lençóis de seda nada lhes afectará o sono.Texto realista escrito com o coração nas mãos.Obrigada meu sempre amigo.Abraço de fraternidade com a amizade e entendimento de causas que nos une.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Dar a volta a tudo. Pensar no futuro. Acreditar. Sermos inteiros, não dobrar a cerviz. Sabes que conto contigo. Abraço

  9. Idalina Pereira

    Que tristeza! São crianças privadas de tudo pela ganância de alguns. Há ódio, muito ódio…mata-se com facilidade…
    Tenho Esperança que as “coisas”mudem…que os gritos de muitos se façam ouvir.
    Obrigada por mais este “grito”. Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Idalina. Nunca perder a esperança. As avenidas esperam por nós. Abraço

  10. Ivone Teles

    Os dias escuros em que nenhuma luz rompe com as nuvens que o chumbo dos dias torna mais negras. Continuam as guerras que matam o bem e poupam o mal. Ninguém foge, porque já não há há forças nem para viver. Crianças que não chegam a homens e mulheres. Carnes rasgadas para sempre. O mundo está louco, ensandeceu.. Desigual. Os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Mas já não chega serem os maiores em bens materiais. Querem sangue. São vampiros que sugam o que resta, o que fica dos destroços. Eis que se encontra um Livro. É um tesouro. Lê-lo faz criar estórias que ajudam a sobreviver. Mas até o livro parte numa enxurrada. Não chega a guerra dos homens. A guerra de elementos naturais desta Terra zangada. Ou o ´calor queima, ou ajuda a queimar, árvores, casas, gentes. O mundo que enlouqueceu. E o que fazemos nós? perguntas com razão. Temos de nos organizar para descer Avenidas ao som, cantado, de canções de luta. Não esqueças que descemos de braço dado. Temos a ESPERANÇA à espera. Se demoramos vamos perdê-la. O Caos que se recolha e hiberne até desaparecer. Diz à Isaurinda que vou com ela e o seu pano cheio vontades como a ” Blimunda ” do livro. Beijinhos ternos, amigo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Nada a acrescentar. Dizer-te que tenho os meus braços à tua espera. Abraço

  11. Fernanda Luís

    Tristemente Belo. Anos e anos de agonia e morte de tantos e tantos inocentes.
    Barbárie.
    Nunca é demais denunciar, lembrar.
    Izaurinda tem razão, a bola a ocupar o horário nobre…
    Civilização, o que é isso?
    Subscrevo na íntegra, com uma lágrima?
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Tanta dor. Tanta lágrima. Vamos contrariar a ganância. Vamos ser nós. Abraço

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