O Apagão
Um tempo de esquecimento. O esquecermos e o sermos esquecidos. As ruas sem saída. Há quem lhes chame becos. De beco em beco nos vamos passeando. Um passeio sem calçada. Uma ilha abandonada. Uma onda gigante que tudo leva. Um vazio. Um oco pensar. Salvaram-se os que chegaram ao cimo da montanha.
Sermos meninos de novo. Brincarmos ao antigamente. Jogos muito antigos. Coisas de paciência. A paciência a faltar. Quadrados, losangos, círculos. Construções de destruir. Desconstruir a realidade. As cores berrantes. As primárias ilusões. Uma festa para o olhar. Brincar ao que resta. Não saber do resto.
Apetece-nos por vezes uma chupeta. Já temos a fralda de novo. Dão-nos a comida à boca. Sorrimos. Talvez apenas um esgar, uma nervosa reação. Uma vontade incompleta. A inteireza que ninguém conhece. Uma realidade que apaga muitas luzes. Uma verdade que muita gente desconhece. Levam-nos numa cadeira, de rodas muito grandes. Que carro aquele. Coisa nunca vista.
Chegam-nos coisas muito antigas. Coisas há muito esquecidas. Coisas que nos enformaram. Que fizeram de nós o que somos. Uma labuta. Caminhar de novo, as mesmas estradas, cometer os mesmos erros, fazer festas aos mesmos animais, amar os mesmos e continuar sem saber se o amor é correspondido. A primeira casa. A primeira cama. A primeira de todas as vezes.
Tudo o que é novo é sempre novo. Hoje, amanhã, depois, assim será até ao último dia. Todos os dias um jornal novo. Os bonecos. Que coisas estranhas esta gente inventa. Não conhecer nenhuma daquelas caras. Tudo a ficar cada vez mais estranho. Não me tragam mais nada, parece pedir. Ninguém entende. Tentam e tentam de novo. De novo lhe pegam na mão. Não se importa. Quase não sente. A indiferença marca-lhe o ríctus. Recebe beijos. Não liga. Um fio de baba escorre-lhe da boca.
Alisa tudo com as mãos. Quer tudo direito. Parece querer endireitar o mundo. Sempre teve na ideia a necessidade de justiça. Sempre pensou muito. Sempre escreveu muito do que pensava. Ninguém sabe o que pensa agora. Fechou-se dentro de uma concha que construiu, ou lhe construíram. Deixam-lhe um lápis e um papel. Não liga.
Dão-lhe banho. Ensaboam-lhe o corpo. Esfregam-lho. Treme quando a água vinda do chuveiro lhe toca o corpo. Parece medo, quase terror. Passou a viver numa hidrofobia permanente. Por vezes cospe a comida e a bebida. Rejeita a vida de uma forma frontal.
Continua a alisar as coisas, alisa, alisa. Tudo já mais que direito. Tudo pronto para entortar de novo. Que jogo aquele. Que inquietação. Por vezes é o não movimento. Os olhos fixos num vazio, o corpo hirto, uma vontade imensa de contrariar tudo e todos. É melhor não lhe dizerem nada. Está no seu momento de profundo desconhecimento. Ninguém sabe o que vê, ou o que procura. Acabará por sair daquele estado com os nervos alterados. Uma nova inquietação.
Alisa, continua a alisar coisas sem fim. Acha que nada está direito. Por vezes abre muito os pequenos olhos. Olhamos para dentro deles e não vemos nada. Dá a ideia de um apagão total, para lá daqueles pequenos faróis.
«Olha para o que te havia de dar! Andas para aí a ver coisas bonitas e depois vens com estas coisas! Não lembra a ninguém.»
Voz da Isaurinda.
«Isto existe. Tu sabes que sim. Já lidámos os dois com estas coisas. Não se deve esconder.»
Respondo
«Eu sei. Mas podias falar de outras coisas. Isso até te faz mal.»
De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Set/2017(138)
Acabo de ler a sua crónica Jorge. Deixou-me triste. Conheço “bem” essa realidade. Até já tive familiares muito próximos no estado de “apagão”.
Por mais que queiramos entender o que vai naqueles “mundos” não conseguimos respostas. Nem o porquê. Mundos à parte, de repente. Por vezes não é de repente, vai havendo sinais, mas nunca estamos preparados para aceitar essa malvada sorte.
O ser humano é muito complexo, de facto.
Respeitar e fazer respeitar as pessoas na sua dignidade e esperar milagres da ciência. Afeto, muito afeto, toque corporal, abraços, beijos, dar a mão… Da minha experiência, nada mais a fazer.
Ninguém é culpado.
Se eu embarcar para um desses mundos só desejo que me façam o que já fiz com outros. Mas não vale sofrer por antecipação. Continuemos a respeitar as pessoas…
Obrigado Fernanda. Diz uma coisa que me intriga, Em que mundo estará esta gente? Em que estádio? Ou estarão mesmo fora de tudo? Para mim apesar de muitas explicações, continua a ser um enigma. Abraço.
Jorge, ninguém sabe. Existem tantos mistérios. Esse estádio, na minha perpectiva e da análise da experiência com a minha mãe, é o que resulta da degeneração ou morte de células que levam à perda de faculdades várias. Como se as pessoas passassem a viver e a caminhar sozinhas num túnel, cada vez mais escuro e fundo, raramente com retorno. Entendo bem a sua questão. Quantas vezes a fiz! Julgo não existir o sentimento de felicidade ou infelicidade e outros do tipo, mas tão somente o de conforto ou desconforto, algo cada vez mais primário. Processo de regressão, mas não voltamos a ser crianças nunca. Por isso, não entro numa de chucha. De fraldas que remédio…
Obrigado Fernanda. Fico com o seu entendimento. Continuarei a minha busca. É isso que dá sentido à vida. Abraço
Emocionante e sensível
Obrigado Isabel. Que bom que gostou. Abraço.
Obrigada pelo teu texto que revela não só a tua imensa sensibilidade, mas também uma das tuas facetas de encarar a vida. Encara-la de frente, consciente de que há momentos da vida que são muito, muito tristes. E que ninguém tem o direito de sentir que, “como não nos atinge directamente, quero lá saber!” É o teu sentido de solidariedade a falar. E como é belo, como é humano esse sentimento! Só se tivermos a capacidade de nos colocarmos no lugar dos que sofrem, dos injustiçados, dos esquecidos, conseguiremos contribuir para melhorar o mundo. Continua a ser exactamente como és, amigo!
Obrigado Maria do Céu. Prometo continuar a ser a voz dos mais fracos, dos deserdados, dos sem nada. Assim me ensinaram, assim tentarei ensinar, assim espero ser até ao fim. De que serviria a vida se andássemos por aqui só a olhar para nós? Abraço.
Uma realidade que dói, que não deveria existir. ..triste….muito triste…mas importante falar dela, escrever sobre ela, sem dúvida!
Obrigada Jorge! Obrigada pela excelente reflexão! Bem haja!
Obrigado Raquel. Sim, temos de alertar, de contar. Abraço.
Tocou-me o texto, como me toca essa realidade. Não adiante fingir que não existe, que não se vê. Toca-me pensar nos pais “órfãos” de filhos.
Toca e dói…dói muito…desejo não ser “apagão”!
Não se canse de escrever…de alertar…de sentir…
Um abraço, meu amigo.
Obrigado Idalina. Por vezes temos de escrever sobre coisas inquietantes. Sobre coisas com dor dentro. Abraço, minha amiga.
Existe tudo o que dizes. Não adianta esconder ou ocultar. É a realidade. E a realidade, muitas vezes, dói!
Durante mais de 1 ano e meio observei situações como as que tu tão bem descreves. Apesar de não serem meus parentes, por os ver diariamente, quase passaram a ser. Raramente tinham quem os visitasse. Nem sei quem lhe pagava as despesas do lar…
Saía de lá arrasada. Tenho uma enorme admiração por as pessoas que os sabem cuidar. Infelizmente nem todos têm formação ou preparação para o fazerem.
É necessário criar instituições onde se cuide com carinho e se preserve a dignidade de quem já tudo esqueceu.
Obrigado Maria. Falas de uma coisa importante: também o cuidador necessita de ajuda. Temos de substituir os depósitos de gente, pelas instituições de que falas. Também vi muitas dessas vidas. Abraço.
Coisas que fizeram de nós o que somos: o pano na mão. Isaurinda. Os becos e a rua. O caminho. Na curva final, a treva serpenteando a pedra, do caminho; a mão trémula; a pele encarquilhada; ferida. A carícia. O cérebro que se engelha; o nervo rompido; a inquietação. O apagão. A carícia. O rubor do sangue. Em cada veia a justiça: cal que não se desmorona.
O sentimento de justiça. A carícia.
É fundo o texto: bate fundo.
Obrigada, Jorge.
Eugénia
Obrigado Eugénia, Nunca perder a noção de justiça e saber ser ternura. A carícia no momento exato. Grande abraço.
Tem muita razão Jorge, não serve de nada esconder e há tanta dor escondida….faz bem em alertar. Nenhum de nós sabe como será o seu fim mas quem passa pelos hospitais e vê enfermarias cheias de pessoas que apenas esperam que a morte chegue não pode ficar indiferente e pensa nisso. Mas meu amigo não o quero tão péssimista, oiça a voz da Isaurinda que ela sabe o que diz. Temos que viver o que nos falta com alegria e logo se vê o que virá. Quero lê-lo para a semana mas espero que mais animado. Um grande abraço .
Obrigado Maria da Conceição. A necessidade de alertar as pessoas. A nossa obrigação moral de cuidar dos mais fracos. Sabermos Ser. Abraço.
Absolutamente de acordo com a minha querida Isaurinda. Pelo amor da Santa… Apagão, só o do Brasil, e onda gigante, só a da Nazaré, ok??? mas pronto, vou comentar porque assim como tu, muitas pessoas conviveram com situações assim, ou semelhantes. Mas também como dizes, tão sabiamente, uma realidade que muita gente desconhece. Porque é mais fácil apagar a Luz e bater com a porta. Serão mais felizes assim?…
Para muitos casos, por muito que nos custe, pedimos que o apagão lhes venha mais cedo, tal o seu e nosso sofrimento. A maior dor, ver quem uma vida inteira foi o pilar de muitas casas e multidões , chegar a um estado de cadáver em vida.
Dor.
Para outros, ver a memória a apagar-se num corpo a decair, onde “apenas um esgar, uma nervosa reação ” não nos servem de consolo, mas antes dizem-nos na forma mais cruel , os “rasgos” de lucidez…
Dor.
Depois, bom, depois há os milagres. Alguém que passou por situações quase terminais , e estão cá. Milagrosamente estão cá. Com todo o seu saber e encanto a ajudar-nos a ultrapassar muita da nossa escuridão interior. A ajudar-nos a aprender a claridade à nossa volta . São os tais anjos sem asas . São os que lhes chamo, seres de Luz.
A minha querida Isaurinda também lhes chama assim.
Abraço, meu querido amigo Jorge. (Espero-te para a semana – mais alegre, sim? )
Obrigado Cristina. Há finais terríveis. Luzes que se apagam. Ondas que nos chocam. Corpos que se desfazem. Para a semana veremos. Abraço
Obrigado Cristina, Temos de olhar para estás vidas. Para este sofrer. Há muito canto escondido. Muita dor ocultada. Muitos depósitos de gente. Abraço.
Inquieta crónica. Tempos de esquecimento, nunca. Tu não és homem de esquecer. Nem tu esqueces, nem nós te podemos esquecer. Esquece, sim, os becos e vai por largas Avenidas para nelas caberes com tudo o que ÉS. Desconstruir uma actual realidade e as primárias ilusões. Acreditámos e não queremos desiludirmo-nos. O tempo passou e, apesar de querermos novas chupetas e termos fraldas, estamos vivos e aqui. Lembramos tudo o que passou e foi importante e esquecemos o que está, agora, junto de nós, físico e emocional.
Aparecem os rituais que repetiremos, porque nos acalmam Estaremos menos inquietos. Chega um tempo em que só os outros se inquietam connosco. Mas estamos cá.
Mas ainda é cedo para ti. Eu estou dez anos à frente. Continuas a escrever e as tuas palavras continuam a ser amadas. Não podes esconder-te numa concha que te criaram e tu criaste para te defenderes. Quem te conhece, quem te ama, sabe que vais renascer. E ficarás mais forte, mais livre, mais auto-confiante.
Isaurinda preocupa-se, mas tu sabes que necessitas de falar sobre o que te magoa e inquieta. Sabes que será meio ” caminho andado ” para voltar a alegria e serenidade e como diz a canção ” tanto caminho andado, desde o primeiro poema” , desde a primeira conversa, abraço,muita emoção partilhada, tanta AMIZADE que não morreu. Pois fala com quem te gosta, te lê e te pode ajudar a encontrar esse caminho. Não és Homem para desistir. Tu és o ” mestre “, disse-mo mais que uma vez um amigo comum.
Pego no pano e vou com a Isaurinda. Vou associar-me a ela e vai aparecer um renascimento que acabará com ” este tempo de esquecimento.” Depois vais arrecadar num sótão sem porta para ir à arca procurar..
Isaurinda, não me digas nada, mas toma conta deste meu querido amigo. Muitos beijinhos.
Obrigado Ivone. Os tempos do fim. Os tempos de outros tempos. Um outro estádio. Um cansado fim. Abraço.
Existe,de tão doloroso esquecemo-nos que é ali na porta ao lado
Sem remetente,sem número, a fatalidade das coisas tem rosto,um nome próprio dito quase a medo.Um medo que assusta.
Quem me dera saltar à corda,ao elástico,à fogueira…e ir por aí…sem saber o nome dessa coisa medonha e assustadora.
Texto de uma realidade impiedosa.Obrigada meu querido amigo pela sensibilidade. Um abraço
Obrigado Célia. Tão lúcida, minha amiga. Violento é o sofrimento de quem cai nestes poços. Abraço.
A sábia Isaurinda como sempre tem razão, não obstante ser um excelente texto, retrato fiel de uma realidade para todos os que vão envelhecendo e ficando dependentes, é triste, muito triste! Obrigada, meu amigo. Coração ao alto! Fique bem. Um beijinho
Obrigado Madalena. Saber do sofrimento, do doente e do cuidador. Tentar ajudar pela escrita. Alertar. Abraço.