Namoros
O outro lado da vida. O outro lado do ser. Um outro ser. Tudo a acontecer numa rapidez que faz tremer. Abanam os alicerces do que nunca se construiu. Cansam-se as cabeças que nunca pensaram. Um jogo e um tabuleiro roubado. Um xadrez que fica bem na saia de uma colegial. A porta das escolas femininas. Os rostos afogueados. Os risinhos nervosos. Até domingo na missa das dez.
O acólito, a alva, o cordão, o turíbulo, as galhetas, a água e o vinho. A missa em latim. O padre de costas para os crentes. Os santos expectantes. Em cada altar lateral um pedido, uma vela, uma oração. As mais antigas devoções. A fé que comanda tudo. A vontade de chegar. A homília. A consagração. A comunhão. O peditório para a nova igreja. O fim da missa. Os encontros.
A saída da missa. As melhores roupas. As paixonetas. O querer e não conseguir. Levá-la até ao quarteirão antes da sua casa. Um silêncio difícil de desbloquear. São sempre lindas as meninas por quem estamos apaixonados. As mais belas! Que ninguém nos queira convencer do contrário. Fazer a comunhão solene juntos e morrer de amor! Pecar por pensamento. A confissão, a absolvição, a penitência. As orações feitas a preceito. Ir, de novo, em busca dela.
Um banco verde de ripas. Um jardim. Sentam-se lado a lado e procuram a mão um do outro. Um beijo roubado. As faces vermelhas. O que ninguém pode ver. Aquele tempo em que todos viam tudo. O medo. Consumar o pecado. Avançar na história por contar. Tudo tão perto e tanta coisa longe. Tanto por fazer, tanto por saber. A pura inocência. O que queremos fazer e o que conseguimos fazer. Segunda-feira à porta da escola.
Uma aventura arriscada. Um gelado na fábrica de gelados. O doce do creme a misturar-se com o amargo do medo. Se aparece alguém? Continuar a arriscar. Esquecer o perdão. A paixão que cega. O perigo eminente. As pernas e os joelhos dela. Aquele pouco entre a saia e as meias pelo joelho. O corpo que treme. O coração acelerado. Tenho de lhe pedir namoro! A falta de palavras.
Pensar em escrever-lhe uma carta. Declarar-me por escrito. Esperar a resposta dela. Tudo através de terceiras pessoas. Os tais amigos de toda a vida. A nossa outra maneira de brincar às escondidas. O receio do pecado. Uma estrada sinuosa. «Afinal isto é amor.» Uma conversa de nós para nós. Pretendendo, assim, estarmos livres de visitar qualquer confessionário. A vizinhança. As alcoviteiras. A rua onde nada passava despercebido. Outro tempo de viver.
A resposta pelas mãos de uma amiga. O desafio aceite. Juras para a vida. Esperar o tempo para que tudo seja aceite pelos maiores. O enorme respeito. O conselho de um primo mais velho. Os olhares das Mães. As Mães que tudo sabem só de olhar para nós. «Vê lá no que te andas a meter.» O sorriso malandro de uma prima. «Não quero chatices com a vizinhança.»
Tempos de namoros e de fé. Tempos que não se apagam da memória de quem os viveu. Namoros escondidos e vividos.
As cartas a multiplicarem-se. Consta que estão classificadas e arquivados. São uma história de vida onde, por vezes, custa voltar. Há quem as queime. Mas isso não apaga a vida. O fogo chega a envolver-nos numa labareda que nos faz reviver a paixão.
«Ouve lá, esta história é contigo?»
Voz da Isaurinda.
«Não. Esta história é a história de muita gente!»
Respondo.
«Não sei não!»
De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Outubro/2018(182)
Tão belo este texto! Recordei nele tanta coisa… Era a idade da inocência! Obrigada, querido Jorge, um beijinho
Obrigado Madalena. Que tempos! Abraço
Contas a história de muita gente. Olhares, palavras escritas, algumas em forma de recado. As borboletas no estômago. Até as mariposas tinham que ser escondidas. Tanta proibição. O tempo passa a metamorfose ainda acontece, sem cartas, sem recados. Que maravilha de texto. Parece um conto de encantar. Abraço Jorge.
Obrigado Regina. Tanto era o que vibrava dentro de nós! Abraço
Quase assim. A Escola era só feminina., mas não havia a missa do Domingo. Mas namoravam os olhos e o coração acelerado. Uma rua que era uma família. Ele era também da rua. Irmão de amigas. Um livro que se empresta. Dentro do livro devolvido, uma carta.Não trazia um cartão para dobrar o canto do sim ou do não. Namoro aceite, paravam-se 5 a 10 m., na mesma rua, uma a descer, ele a subir, cada um para o seu Liceu. E, todos os dias, era assim o namoro. Se calhava ir lado a lado para o mesmo lado da rua e as mãos ao caminhar roçavam, o coração saltava do peito. Simples e inocente. Tão pouca vivência. Eram assim os namoros na minha rua. Um enorme respeito que mães, pais e vizinhas nos exigiam. Isaurinda diz :” Esta história é a história de muita gente.
Eram assim a maioria dos namoros. Recordar tempos bons, porque assim gostávamos. Momentos de emoção inesquecíveis. Beijinhos querido amigo Jorge
Obrigado Ivone. Os tempos, as cidades, algumas diferentes. Que bem tu descreves tudo. Os passeios da vida. Abraço
Uma crónica maravilhosa. Talvez a história da nossa geração.
O sentir da inocência! Ou talvez não! Tanta coisa proibida!
E se não fosse proibida? Faria parte das nossas memórias?
Como seria?
E Isaurinda, a perguntar …..esta história é a tua?
Obrigada, por tão bela escrita!
Obrigado Eulália. A inocência e o desejo. Abraço
Todos nós avançamos com a lucidez das memórias,creio,que serão estas lembranças que guiam os momentos nossos numa solidão verbal quando outros tempos nos fazem presença.Obrigada,meu amigo por mais este momento de partilha desse tempo que de certa forma será de quase todos nós. Abraço!
Obrigado Célia. Palavras sábias as tuas. Abraço.
É a adolescência de nós todos. É o aprender a viver, a lidar com as emoções e com as hormonas. Que bonito o que escreveu. Lembramos sempre com saudade esses tempos apesar de nem tudo serem rosas.Mas éramos novos e tínhamos uma vida pela frente e pensávamos que bastava querer e mudavamos o mundo. Abraço Jorge e obrigada.
Obrigado Maria da Conceição. O nosso aprender. O querer arriscar. Abraço
A Tão bonita a sua crónica. “É a história de muita gente”
Tempos que não se apagam da nossa memória.
Namoros escondidos, vividos e proibidos, mas o Amor Venceu.
Um grande abraço amigo
Obrigado Esmeralda. Também houve muitas derrotas. Coisas que pareciam o fim do mundo. Assim crescemos. Abraço