Jogatanas
Que nunca se calem as vozes que nos alertam para o que se tenta esconder. Muitas verdades varridas para fora do nosso conhecimento. O que não querem que nós saibamos. Só se ouvem as vozes dos donos da coisa. O crime que não magoa fisicamente. Uma carambola num bilhar às três tabelas. As bolas de marfim. O giz azul. O pano verde. O taco. Uma manga de alpaca. A rabeca que nos acrescenta o braço. Um jogo que não queríamos jogar. O marcador a andar.
A Mágoa. Uma dor surda que invade os corpos. O sacrifício desnecessário. A maldade. A cegueira do verde papel. As notas falsas. Os números forjados. Os mentirosos índices de felicidade. Tanta história mal contada. Mais dois suicídios. Como medir um estado intermitente? De repente um acesso de loucura. Muitas armas. Muitas balas. Muitos mortos. Há quem diga que é desenvolvimento. Lá em baixo o jogo continua.
O crupiê troca de baralho. Novas cartas. Novo jogo. Joga-se ao blackjack. As fichas coloridas. O casino. A economia de casino. Os banqueiros que abrem falência. Os bancos que já pagámos e continuamos a pagar. Quantos mais vão falir? A justiça que faz que anda mas não anda. Tudo à solta e a viver em mansões. Os paraísos fiscais.
A pensão que ainda não é suficiente. O dinheiro que falta. Já não há mais nada onde cortar. Já se come pouco. A renda, a água, a luz. As dificuldades dos filhos. A escola dos netos. A sueca. As cartas muito gastas. A árvore grande e uma mesa num jardim. Uma bandeira. Nem uma vasa. A humilhação. Já acabaram as covas fundas dos galegos. Já não há vinho do lote. Onde se pode beber um copo de três?
Há baile na sociedade recreativa. Toca o conjunto do costume. Pares abraçados afastam a solidão. O encerado da sala ajuda no deslizar dos pés. Há pares que já voam. A música agiganta-se. De repente, uma voz: «damas ao buffet.» O bar fica cheio. Os mais velhos continuam a jogar o dominó. Sai o carrão. As pedras a baterem na mesa. Passo. Dominó. Contam-se as pintas. Faz-se a escrita. Os do baile já dançam de novo. Joga-se em várias mesas.
Está na hora do chá. As folhas a descerem. Tudo pronto. O bule e as chávenas de porcelana. O avental branco da criada. O fumo a subir. Os bolinhos secos. O jogo da canasta. O monte, o lixo e o morto. O jogo que se prolonga, o chá que se saboreia. Outras casas, outras vidas. Na cozinha as criadas jogam a bisca lambida. Reina a paz no reino do senhor.
Ouve eleições no burgo. Eleições livres. Ninguém enviou polícias de outro lado. Fomos os que quisemos ir. Devíamos ter ido muitos mais. Temos hipóteses de escolha. É um dever que não devemos alienar. A contagem dos votos foi serena e vigiada. Tudo bateu certo. Dançaram cadeiras, nomes e lugares. O normal em democracia. Ganharam uns, perderam outros. Num jardim muito desenhado joga-se um partida de xadrez. As brancas e as pretas. Um jogo que já se prolonga há muitos anos. Uma teimosia. Todos acham que nunca irá acontecer um xeque-mate. Os homens teimam em jogar. Os peões gastos. Viva a liberdade.
«Olha, tanta jogatana, e não falaste do burro em pé.»
Voz de Isaurinda.
«Tens razão. Há quanto tempo não jogamos um jogo desses? Temos de jogar um dia destes.»
Respondo.
«Promessas, estou farta das tuas promessas…»
De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Out/2017(140)
Olá Jorge. Mais um belo texto.
Desta vez o jogo, o jogo aberto e o jogo escondido de baixo da mesa.
O dia em que alguns de nós tiveram oportunidade de votar e não o fizeram e mesmo aqui ao lado alguns foram agredidos pela policia para o poder fazer. Alguns pensam que a liberdade é um dado adquirido, mas não é custou muito a conquistar o direito a poder votar em liberdade …
Até para a semana meu amigo.
Obrigado Maria da Conceição. Tanto jogo mal jogado. Tantos baratos por pagar. O vício. Abraço.
Os perigos do jogo. O vício. Os que hipotecam o SER com a ambição de TER. O jogo da vida. As jogadas perigosas. O jogo sujo. A batota. Os jogos de palavras.
Jogos, só didácticos ou a feijões!
Obrigada pelo teu texto tão lúcidos e pertinente.
Obrigado Maria. Tanta batota. Tanto avaro. Vamos jogar limpo. Abraço
a lerpa, o sete e meio…tantos jogos e tudo na mesma. procuro mudar de lugar, são momentos em que a cabeça refresca e quando regresso, tudo igual. desilusão. memórias curtas….tão lúcido e bem escrito o que nos trazes hoje! também queria um futuro mais saudável para os meus descendentes, utopia talvez! o descontentamento mora ao nosso lado e é transversal ao mundo para onde quer que dirijamos os nossos passos. resta-nos a poesia, a tua de todos os dias e alguma prosa como a do Valente para quem não se lembra, não conhece ou já se esqueceu…
Obrigado Fernanda. Que lúcida. Quanta poesia em tudo o que escreves. Farol que seguimos. Afecto e ternura nos braços abertos e um jogo danado. Abraço
Tão bonito quanto realista.
Obrigado Isabel. Jogos, jogadas e alguns jogos viciados. Abraço
Jogos da vida. Vicios. Vidas de jogo, estragadas, escondidas. São os jogos de azar.
Esta crónica tão atual também me fez sorrir. Voltei à minha infância, quando jogava “ao burro”…”de pé ou deitado”, qualquer um fazia as minhas delícias. Tão bom!
Obrigada, Mestre. Um abraço, meu amigo.
Obrigado Idalina. Os jogos do vício e a ilusão do jogo. Abraço
Obrigada Jorge C. Ferreira pela maravilhosa crônica!
Obrigado Claudina. Abraço.
Mais um belo texto pertinente, Mestre Jorge. O alerta para os jogos perigosos que arriscam a própria vida de quem se vicia. Quando menciona o” burro em pé”, remeto-me para a minha adolescência em que jogava com o meu avô. Tempos maravilhosos que se jogava o” burro em pé” e o” burro deitado”. Sorrio e me delicio com a Isaurinda que espera a sua atenção para o baralho de cartas. Adorei sua crónica como sempre e lhe desejo a continuação de Boas Férias no seu novo Reino. Abraço.
Obrigado Ana. Há jogos que cheiram a desgraça, outros a ternura. A vida é nossa. Abraço
A excelente análise e a sensibilidade de sempre.
Obrigada, Jorge.
Um abraço
Obrigado Maria Rosa. A sensibilidade única do seu comentário. Abraço
O jogo da vida…
Excelente esta reflexão sobre o jogo da vida, ou a vida num jogo?
Há momentos que me sinto cansada. Diz à Isaurinda que também estou farta de promessas, mas diz-lhe também que não são das tuas.
Hoje, estou particularmente cansada (por outras razões – fiz em mais de duas horas o trajeto no transito que costumo fazer em 20 minutos)
Se me permites, querido mestre, vou fugir (só um bocadinho) ao tema e deixo-te um poema de Nuno Júdice.
Abraço, meu mestre.
Obrigado Cristina. Muito jogo se esconde no casino de todos os jogos. Abraço
Um dia à espera da tua crónica. Eis que chega, lúcida, como sempre. A vida do jogo e o jogo da vida. Neste, corremos um risco ainda maior de perder. Os trunfos todos na mão dos ” donos ” que querem conquistar o mundo. Os insensíveis, superficiais, que só querem acumular o que lhes não pertence. Jogos viciados, cartas marcadas, um mundo de batoteiros. Uns morrem à fome em paraísos fiscais onde outros depositam quantias roubadas, ou adquiridas com fraudes que a justiça finge não ver.
Morre gente porque não consegue viver. A humilhação deprime. Não há comida que chegue. A dor calada e o impulso da morte que se torna maior que a vida.
Há lugares onde ainda se dança. Corpos enlaçados ajudam a esquecer, por momentos. No xadrez os peões unem-se e impedem xeque-mates. O dinheiro anda em mãos sujas e não chega a quem precisa. Mas ” a paz podre reina no reino do senhor.” Bebe-se chá em chávenas de prata e as criadas jogam o ” burro em pé “, enquanto as patroas se entretêm na canasta.
Uma crónica tão actual, a tua. Acho que vou ter com a Isaurinda. Há tantos anos que não jogo ao ” burro em pé “. Se quiseres deixamos-te jogar, também. Jogos que ajudam a limpar a cabeça do que faz doer. Tanta dor em tanto mundo. O dinheiro que é morte e não ajuda na vida.
Continua a passar uns dias em paz. Beijinhos aos que amas e te acompanham. Os teus amigos aqui esperam-te, sempre. Boas férias e beijinhos, meu querido amigo/irmão
Obrigado Ivone. Bamos dizer não aos jogos viciados. Vamos continuar a jogar limpo, por muitos custos que isso tenha. Abraço.
Vamos
Uma viagem pelos casinos da vida.Já não me surpreendo,sei, que em cada segunda feira, há uma imaginação fértil de extrema sensibilidade, que nos é presenteada pelo meu querido amigo com alguns arrufos da Isaurinda.É um prazer enorme poder entrar por aqui sem bater à porta e ler-te meu escrevinhador preferido.Da sempre amiga,Célia um terno abraço.
Obrigado Célia. Tanto jogo. Tanta carta viciada. A jogada final. Abraço
Humm muito nos conta! Senti a sua felicidade pela liberdade exercida. Só por isso valeu a pena a viagem!….
Neste texto faz uma análise muito precisa do estado caótico a que se chega pela ganância de dinheiro. Sempre ele, o vil metal! Obrigada Jorge por nos ajudar a pensar acerca destas coisas tão sérias que mexem com a vida de todos nós. Continuação de boas crónicas. Boas férias! Um beijinho
Obrigado Madalens. Há jogos que devemos evitar. Jogadas arriscadas. Dados falsos. Abraço