Crónicas de Jorge C Ferreira | Deslumbramentos

Deslumbramentos

 

Há quem se deslumbre com o que nunca fez. Há o narciso que se vê ao espelho e deslumbrado se abrace. Há o fazer de conta, o saber vender-se, o querer impressionar. A pressão que ultrapassa o vapor da vida. O não se enxergar. O alumbramento. A leveza da terra toda. Um ramo de flores. Um pai nosso e duas avé marias. O pecado expiado. Outras vez ávido de se ver ao espelho. Pronto para de novo se abraçar e fazer amor consigo.

Há o verso quase perfeito, o poema, o livro inteiro, a obra nunca acabada. A incessante procura da palavra, daquela palavra. O gesto assim escrito. Uma elegância amada. O deslumbramento da loucura assim cantada. O recato. A timidez. O ter medo de incomodar e, no entanto, a beleza a aparecer em cada acção. Gente que se esconde, pessoas sem espelho, a lucidez dos inteiros. Com isto nos deslumbramos. Poetisas e Poetas com vozes únicas. O milagre da palavra. O único milagre em que acredito. Porque leio. Porque há palavras que crescem dentro de nós. Algo que sentimos e vivemos. A tal coisa que não podemos esquecer. Assim se ama.

Amar a arte. Amar a arte dos outros. Amar os mestres. O fato macaco do artista. A performance, o longo monólogo. Os que são únicos e se misturam com todos. Os tocados por qualquer coisa de especial. Os que se fizeram a si próprios. Um esforço de que não se queixam. Manuseiam a beleza com golpes de genialidade. Sentam-se a um canto e procuram algo maior. Eternos insatisfeitos. Estão sempre na nossa memória. Na nossa enorme alegria de ser. Guias e sinais. O tempo todo.

Deslumbramento é ter amigos e ser amigo. Tudo sem interesses, nem deves e haveres. Uma pureza em que ainda acredito. Amigos da vida e para a vida. Abraços, beijos e afectos. O que foi passado junto e nunca esquece. Luzes que nunca se apagam. Sinais que nos marginam a vida. O sépia, o preto e branco e o efervescente colorido. O fixador, o revelador, a câmara escura, as pinças, as molas e um cordel. O deslumbrante acontecer. Uma luz vermelha. Um sinal. A pose. Os brilhos. Todos juntos e de mãos dadas. Um caminhar para a aventura única.

O génio que não sai da lâmpada. O génio parido de parto natural. O filho nem sempre pensado. Porque há filhos do acaso que são génios. Não lhes peçam desejos. Não procurem neles o anel mágico. A sua luz é outra. Uma luz que nasce e convive com o belo. Por vez de uma diáfana fantasia. Uma intensidade que se vai diluindo em focos que aquecem e morrem em estátuas de antigas deusas. Corpos nascidos da pedra bruta. O sonho ao alcance das mãos. As “Mil e Uma Noites”. Outro deslumbrado momento.

Deslumbrante é viver. Adormecer e acordar. Ter sonhos que não cabem em nós. Ter um corpo que nos ajuda ser noite e dia. Um ser como nós. Um ser normal e limpo. As raízes que erguem vidas iluminadas. O mais difícil de tudo é viver. Viver de forma simples e sem preconceitos e falsas ilusões. Saber ser bom. Saber andar de braço dado com o que nos faz sonhar. Ler um livro, ver um filme, apreciar um  quadro e ser capaz de chorar.

«Olha lá, que deslumbramento é esse que te apouca?»

Voz da Isaurinda.

«A busca do belo, da verdade, do mais simples.»

Respondo.

«Tanta conversa, para coisa tão simples!»

Diz Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Nov/2017(147)

 

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28 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | Deslumbramentos”

  1. Branca Maria Ruas

    Deslumbro-me com a tua escrita e com o modo como descreves este deslumbramento que é VIVER!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Eu deslumbro-me com os teus comentários. Com a tua maneira de Ser. Abraço

  2. maria fernanda morais aires gonçalves

    Hoje apetecia-me falar-te em “brasileiro”, vou-te contar:
    eu vejo muitos deslumbrados pelas avenidas da cidade e até por outras avenidas onde nós nos vamos encontrando. até em escaparates, em ecrans, etc, etc. mas por muito que se passeiem à minha frente e me atirem com a banha da cobra pela janela a dentro, por enquanto só me deslumbro com o que eu quero e gosto e às vezes até uma simples literatura de cordel me contenta mais do que um texto difícil de digerir e quem diz da escrita diz de todo o resto da arte incluindo pinturas, instalaçoes e sons.
    O Belo está muitas vezes nos teus olhos e no teu coração e aí nem todos conseguem entrar. Parabéns pelo teu texto de hoje!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Buscar o belo. Amar os simples. Abraço

  3. Isabel Soares

    Belo texto. Que prazer lê-lo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Minha generosa amiga. Abraço

  4. Raquel Lameirão

    Olá Jorge! Sempre bonito na simplicidade que é para todos!!! Maravilhoso tudo o que escreve e nos deslumbra mais a cada texto! Nos deixa agarrados pela beleza….pela honestidade vom que escreve! O seu coração transborda…e faz transbordar o meu também!
    Atrevo-me a enviar um sentido abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Raquel. Que generosas as suas palavras. Grato por elas. Abraço

  5. Idalina Pereira

    Deslumbramento. Maravilhoso título para uma crónica.
    Continuo a deslumbrar-me cpm pequenas coisas – o pôr do sol, o luar, um livro , um fiilme, a chuva a cair,( como agora) e os seus textos.
    Obrigada, Mestre. Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Idalina. Amar o simples. Reparar no que está tão perto de nós. Abraço

  6. Isabel Pires

    Deslumbrante é viver. Adormecer e acordar. Obrigada

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigal Isabel. Sim, a vida toda. Abraço

  7. Cristina

    Belíssima crónica
    Deslumbrada com a tua escrita. Sempre.
    “A busca do belo, da verdade, do mais simples “ – Parece tão simples, não é querida Isaurinda?
    Abraço -os muito. Obrigada.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. O belo sempre. Grato pelas tuas palavras. Abraço

  8. Maria da Conceição Martins

    Deslumbrada fico eu Jorge, com os seus textos, sempre tão bonitos, tão sentidos, em linguagem tão acessível,mas com tanta beleza. Obrigada meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria da Conceição. Que bom ter lido e comentado. Que bonitas as suas palavras. Abraço

  9. Fernanda Luís

    Li e reli. Deslumbramento.
    Repito-me, que seria de nós sem as artes, os artistas, criadores, cientistas, enfim?!
    Os verdadeiros génios são ou sempre foram seres humildes, irreverentes, inquietos… Características de Grandes.
    O Jorge é Grande. Admiro a sua arte, a sua busca persistente pelo “belo”.
    Obrigada. Continue a deslumbrar-nos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Generosas aa suas palavras. Buscar o belo sempre. Abraço

  10. Ivone Teles

    Como é belo este texto. Como em palavras directas e simples e, por isso mesmo belas e entendidas por todos, falaste de deslumbramentos. Quem se deslumbra não tem os pés no chão, nem a realidade no espírito. É, será sempre o amor o que pode salvar a nossa memória. Darmo-nos uns aos outros, ouvir os nossos pensamentos e também os dos outros, trocá-los para os apreciarmos mutuamente. Sermos os outros, sabendo ter a generosidade de os acolhermos, de nos misturarmos, de sermos uma unidade que se ama e respeita.. Deslumbrar é sabermos como seria bom haver um mundo que falando, escrevendo, lendo, escutando, será um corpo de gente que vale a pena.

    Porque vale sempre a luta pela ajuda aos outros.” A busca do belo, da verdade, do mais simples “, dizes e como tens razão.

    Amigo, eu continua a creditar que desceremos o caminho de braço dado, cantando cantigas revolucionárias, mas sempre actuais, procurando ideais que nos unem.

    Diz à Isaurinda que irá connosco e, que esse é o teu, meu, nosso deslumbramento.

    Beijinhos ternos meu querido amigo/ irmão <3 <3

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Sim a beleza maior é conseguir uma sociedade mais justa. O simples. A inteireza. Abraço

  11. Esmeralda Machado

    Coisas simples que nos fazem deslumbrar. Obrigada amigo pela deslumbrante crónica. Um abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Esmeralda. Deslumbrante o seu sentir. Que bom estar aqui. Abraço

  12. Regina Conde

    Deslumbramento, efeito do teu texto. Visão do belo, conjunto de competências que se aprendem e nos transmites quase como lição de diferentes sentires da Vida. Abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Belo o teu entendimento do belo. Apenas escrevo. Abraço

  13. Célia M Cavaco

    As qualidades vividas em cada vivência de muitas maneiras e escolhas não egoístas,mas,com a simplicidade que o ser humano deveria carregar à nascença.Olhar e apreciar a beleza em cada momento que gera a grandeza da personalidade.Obrigada meu amigo por esta simplicidade tão grandiosa de ver e transmitir por palavras que me enternecem neste final de tarde.Abraço terno.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Nascemos todos do mesmo modo. Somos concebidos do mesmo modo. Depoi há a vida o entorno. O simples é o mais difícil. Abraço

  14. Ana Pais

    ” O milagre da palavra” , a leitura, ver um filme com a pessoa amada, o convívio com os amigos… Pequenas grandes coisas que nos faz deslumbrar. A voz protectora da Isaurinda de pano na mão, uma delícia. Um deslumbramento lê-lo. Grata pela partilha. Um abraço mestre Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana. O milagre é de quem lê. Procurar o belo no mais simples. Abraço

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