Caminhada a duas vozes
A vida a andar ao contrário. Uma volta difícil de dar. As curvas e as contracurvas. A cansada coragem. Apesar de tudo, nunca desistir. Por vezes perdemos tempo a tentar entender o inexplicável. Não vale a pena, é um tempo perdido. Saber das abertas e dos ocasos. Ver para lá das nuvens. Seguir o caminho. Ter atenção aos sinais. Acreditar. Continuar a beber a vida.
Outra voz:
«Por onde ando, onde estou? Aqui ando perdido. A perdição a chamar-me. Não vejo caminhos. Não vejo. Uma cegueira que se apodera de mim. Um véu. Opacos tecidos. A falta de luz. A falta de mim.»
Aprender com os caminhos já percorridos. Com as teimosias da vida. Os altos e os baixos. Os interregnos. Os sonos profundos e os inesperados despertares. Recomeçar. Não ter medo do princípio das coisas. Recusar o que nos oferecem como inevitável. Nunca dar nada por adquirido. Conhecer os rituais. Saber das cerimónias. Continuar.
Outra voz:
«Procuro-me. Uma busca que quase me agonia. Sinto os sinais do corpo. Tento tornear as dores. Um dente que se parte. Sou quase um animal em fúria. Tento acalmar-me. Diz-me tu, minha asa protectora, o que tenho que fazer para desembrulhar a vida.»
Tudo aparece como que nascido do nada. Uma força difícil de contrariar. Uma vontade própria. Uma danada auto suficiência. Sobram algumas aparas próprias de toda a criação. Não servem para nada, mas ninguém se desfaz delas. Ouvem-se alguns queixumes. Gemidos vindos de muito longe. Muitas camas com gente que já não sabe de si.
Outra voz:
«Doem-me as dores. Não acreditam? É verdade! Réplicas tremendas. Quase como uma crise sísmica. Tenho medo que a água que vive em mim se revolte. Estou num estado em que me custa saber de tudo. Espero um abraço. Quero a cura. Quero saber o sabor dos afectos. Sei que querer-me é muito importante. Vou partir nessa demanda.»
São invisíveis os corredores do sofrimento. Alguém lhes subtrai a luz. Não conseguimos descortinar a cor das coisas. Uma azáfama tremenda passa por nós. Chiam rodas por olear. Panos crus. Cruzes sem crucificados. Pagelas de santos por canonizar. Chove no canto de uma vida. Dizem que é uma água santificada. Só acredita quem quer.
Outra voz:
«Já cruzei algumas linhas desconhecidas e ainda não cheguei a lado algum. Continuo a sentir os sinais do desconforto. Não quero desistir. Prometi, está prometido! Assim tentarei cruzar o cabo de todos os sacrifícios. Disse-me um eremita que, depois dele, é tudo uma doce suavidade. Não vou desistir. Atingirei tal desidrato?»
Que mundo nos havia de caber. Pinhais a arder. Gente ardida. Estradas da morte. Gritos, chamas, tremendos ardores. Fogem animais, ouvem-se uivos de agonia. Não há água para tanto fogo. As nuvens fugiram, ou calaram-se. Medo? Teimosia? Ninguém sabe. Tudo se vai alterando, conforme o caminho que vamos fazendo.
Outra voz:
«Cruzo portas abertas de par em par. Talvez um anúncio de novas vidas Estou a ouvir sons que soam a sagrado. Todos os meus sentidos estão agora num estado de quase encanto. Não sei onde estou. Não vejo ninguém, embora sinta que há quem me veja. Uma estranha sensação. Não sinto o corpo. Em que dimensão estou?»
Nunca chegamos ao fim de nada. Há sempre mais alguma coisa que nos acontece. Chamam-lhe surpresa. Há surpresas que dispensamos. Chamam viver a este desassossego. Continuo ansioso pela chegada das ternuras.
«Olha lá, tu põe-te fino. Parece que queres fazer medo às pessoas!»
Diz Isaurinda.
«Querida, isto é uma caminhada a duas vozes. Uma parte do nosso caminhar.»
Respondo.
«Sim, sim. E isso das vozes também me faz impressão.»
De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Fev/2018(158)
Que estranho, só hoje consegui ver este texto e foi porque fui à sua página! Deixo-lhe aqui o meu grande abraço e que nunca deixe de sentir os nossos afectos! Obrigada!??
Um texto excelente! A dualidade. O desassossego
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Obrigado Alcina. Sim, o desassossego e as vozes. Abraço
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Uma “Cantata a Duo” escrita por um grande mestre notável, tu, Jorge. Uma melodia exposta com vigor e que entrou facilmente no meu ouvido. Grande inspiração, marcada pela dúvida permanente da vida em si, da precariedade, beleza e sofrimento que ela nos oferece. Em colcheias e semi colcheias nos remete em cada voz para as incertezas e contrastes nos andamentos da tua peça musical bem conseguida na partitura que hoje nos ofereces. Eu canto a contralto e tu a baixo. vamos para o palco!
Palmas para o compositor.
Obrigado Fernanda. Que bom é ler as tuas palavras. Tu que escreves e nos escreves de corpo inteiro. Belo o teu comentário que não mereço. Abraço
Quão emocionante crónica filosófica , que nos remete a reflectir na dualidade da vida . Suas inquietações e desassossego. A intensa preocupação do Ser ou não ser. Medos, surpresas inevitáveis, escolher o caminho. ” Continuar a beber a vida” – Continuar a viagem com carinho, afectos e ternuras . Vou continuar por aqui a lê-lo nestas maravilhosas palavras. Um abraço amigo poeta.
Obrigado Ana. É sempre bom ler comentários como o seu. Seguir sempre o caminho. Abraço
i don,t understend .way my comment wait moderation ?
Obrigado Amélia. Foi a primeira vez que comentou? Quando tal acontece, vai à direção do Jornal. Amanhã tentarei saber. Abraço
Fui , cheguei .compreendi mais um pouco .eu ,bem que adivinhava, mas ,agora, hoje , sei mais um bocadinho ,só um bocadinho, mas somado ao outro lado, ao lado da dor ,é muito .é tudo . é quase a plenitude .espero-a humildemente . um abraço .
Obrigado Amélia. Um caminho, uma sinuosa estrada. A meta que se evita. Abraço
A necessária inquietação, o eterno desassossego à vida. Curioso como esta emocionante crónica, me fez recordar ” As aventuras de João Sem Medo” – Todos temos medo, mas como sabiamente dizes, ter atenção aos sínais e seguir o caminho ao encontro das forças que muitas vezes não sabemos de onde vêm – estranhas sensações, surpresas, chamemos-lhes o que quisermos, só não podemos perder a esperança, desistir nunca. E sim, aguardar “pela chegada das ternuras” – Sempre!
Caminhar a duas vozes, sim! Agora, “põe-te fino” Jorge. Abraço. Adorei.
Obrigado Cristina. Que livro te foste lembrar! O grande José Gomes Ferreira. Um livro que já comprei para a bibliotrca do meu neto. Este é outra desassossego. São outras falas. Abraço.
Gostei muito desta caminhada a duas vozes. Vozes que, umas vezes se completam, outras vezes se questionam. Avançar, recuar, hesitar, quase desistir, continuar, escolher o caminho, seguir. O passo pesado. O passo leve que conduz ao voo. O desassossego. A inquietação. A leveza da plenitude. Uma caminhada cheia, com diversidade e beleza não pode ser feita a uma só voz.
Obrigado Maria. Que belo o teu comentário. Não vou acrescentar mais nada para não estragar. Abraço.
É isso Jorge. O desassossego da vida. Magnifico o texto de hoje. Aqui tem o meu abraço.
Obrigado Maria da Conceição. Vamos desassossegar a vida. Vamos viver. Abraço
Coincidências. Um desassossego sossegado, tranquilo…ser eu, ser tu, ser outra, sendo sempre ela. Uma auto suficiência conquistada a ferros. Sentimentos que se foram fortalecendo, encapsulando para proteger os afetos e assim evitar sofrimentos inúteis. Caminhar a várias vozes, apoucando.se às vezes, agigantando-se outras, ziguezagueando em perfeito equilíbrio instável. Ser eu, ser tu, ser ela…Obrigada meu bom amigo por fazer nascer as palavras. obrigada por estar tão atento às vozes dos outros, Obrigada tão somente por existir, ainda que me chegue só(?) de forma virtual. Também não podemos ter tudo, né! Grande abraço .
Obrigado Maria do Carmo. Lúcido o seu generoso comentário. É uma amiga generosa que sabe bem ouvir. O ziguezague da vida. Abraço.
Sempre a duas vozes. …gosto do texto e ao mesmo tempo inquieta-me….mas a vida é uma inquietação permanente…não há tréguas!!!
Obrigada Jorge!!!! Sempre excelentes reflexões!!! Abraço!!!!
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Obrigado Raquel. A necessária inquietação. o eterno desassossego. Falar. Abraço
Inquietação, desassossego, alvoroço que não nos largam.
Duas vozes em luta ou conflito, Qual delas ganhará?
Não, de psicose não se trata. Direi filosófico.
Pratos da mesma balança à procura do equilíbrio?
Dialética do ser?
Sabemos pouco, cada vez temos mais dúvidas.
Gostei muito, apesar da inquietude.
Abraço.
Obrigado Fernanda. Uma dessassossegada forma de pensar e dizer. O caminho e as inquietações. Como gosto do seu comentário. Abraço
Falarmos connosco, Creio, ou pelo menos acredito, que sim. E como são importantes esses diálogos. Talvez nos orientem para o melhor caminho da vida; talvez nos queiram mostrar o outro lado de nós próprios.. Quando já vivemos uma significativa vida, maiores os diálogos. Tanto nos podem trazer alegria, como lembranças que queríamos esquecer. Querido amigo, vamos enfrentar as nossas dúvidas e fortalecer o corpo e o espírito com a experiência do já vivido. Não, a vida não pode derrubar o nosso melhor. ” Quem me leva os meus fantasmas ” canta o Pedro Abrunhosa. Dispensamos as surpresas, porque queremos as ternuras de tantos que nos amam. Dizes, e bem, que não precisamos de desassossegos. Quando queremos, lemos F.Pessoa na pele de Bernardo Soares( ou o contrário) e o seu Livro. Às vezes são vozes a falar connosco. Fazer o exercício diário ( já o fiz ) abrir , ler e ficar com o ” recado. Diálogo a duas vozes. A Isaurinda tem razão quando te sente inquieto com as vozes. Ela gosta muito de ti e, por isso se inquieta. Também ela numa pausa do teu caminhar. Por aqui vou ficar, sempre contigo. Beijinhos
Obrigado Ivone. Sempre tão importante a tua leitura e, mais ainda, o teu comentário. O que eu gosto do teu saber! Abraço.
Adorei a sua crónica. Vou pensar qual será a minha “voz”. Um abraço amigo.
Obrigado Esmeralda. Até pode a adoptar as duas vozes. Dialogar consigo. Abraço
A inquietude e o desassossego,acredito que possamos tornarmo-nos mais humanos nesta dualidade de sentimentos perante o que a vida nos oferece.Surpresa ou não,a vida atira-nos para um jogo de xadrez,à quem contorne o jogo e consiga um xeque.mate,derrotando o invencível.Vou reler o texto,vou talvez ouvir uma dessas vozes.Um abraço meu querido amigo
Obrigado Célia. Este caminho. Esta dualidade. Assim vamos andando. Abraço