As casas de uma vida
O cheiro das casas. As casas que foram nossas ou nos emprestaram. Casas com vida dentro. Casas vividas e desvividas. Os livros a correrem as estantes. As estantes a mudarem de sítio. Os autores que amamos sempre perto de nós. Uma estante especial. Um lugar de honra.
As mulheres das casas. As suas diferentes maneiras de as habitar. Os largos caminhos. Os diferentes cabelos. Os tamanhos e as cores. O amor que sempre se jura eterno. As paredes que não falam. As camas que suam. As roupas, os trapos.
A vida num carrossel sem bonecos. Apenas os declives. O motor e uma música que ia mudando. As noites loucas e longas. O sabor dos corpos. A entrega toda. O orgasmo. Um cigarro. O fumo a levar os gritos. Como se fosse uma nuvem de saudade. Os corpos abertos como origamis. Uma oriental aventura. O mundo cada vez mais pequeno. Tudo tão diferente e tão igual.
Fazer a mala. A vida toda num saco. As casas que foram como nossos asilos. Ali nos deixarem viver. Muitas vezes fomos felizes. Muitas vezes sangrámos o corpo e chorámos a vida. As cabeças encostadas. Os cabelos a misturarem-se. Uma trança, dois corpos, duas vidas que se queriam unir. Um desígnio. A inexistência do destino.
As casas todas. As alugadas, as compradas e vendidas, tudo até à casa que nunca é final. Porque nada é definitivo. Tudo isto vamos aprendendo com a vida. Nunca nada é nosso. Toda a vida é um empréstimo sem prazo definido.
Vão mudando os vizinhos, as alcoviteiras da rua, os cromos e os loucos de estimação. Vai tudo mudando com as ruas e os lugares. Um largo onde se juntam os que nada têm para fazer. Os bancos do desgaste. A vida a passar. As árvores mais antigas. Os odores e as alergias. Os pássaros e os gatos. Muitas vezes o mar. Sempre o mar e os barcos que, no negro da noite, clamam contra o nevoeiro. Um forte com cadeiras abençoadas. Uma baía que não é a de todos os santos, mas que nos abana o sentir. Tomar banho. Salgar os sentimentos. Depois aquecer o corpo no corpo do outro. Uma praia só nossa. Uma aventura que se multiplica.
Os restaurantes onde nos fazemos comensais. Quando já sabem os nossos gostos e nos esperam. Os outros comensais. A gente que se vai perdendo pelas mesas e esquecendo as horas. A porta fechada. Já não entra mais ninguém. Ficamos até nos esquecermos onde estamos. Uma outra casa. Uma nova forma de viver. Amar as mãos de quem nos faz as iguarias. Agradecer sempre. Uma questão de educação. Ser educado para amar. Agradecer a comida como se fosse sempre a “Última Ceia”.
A primeira casa. A Mãe de todas as casas. A casa de nascer. A casa ninho. O leite da Mãe. As primeiras farinhas. Aprender a gatinhar, a andar. A baba, o babete. A bebé do andar de baixo. Uma companheira de crescimento. Uma amiga, que pensávamos ser, para a vida. As primeiras brincadeiras. O líbido a crescer. Os médicos e as enfermeiras. A auscultação. Os carros e as bonecas. Um menino que gostava de bonecas. As trocas e as cumplicidades. Aceitar sempre o outro. O cheiro da Mãe. O cheiro que nunca esquecemos.
«Olha que viagem fizeste hoje! Gostei e lembrei muita coisa.»
Voz de Isaurinda.
«Somos também, um pouco, as casas onde vivemos. Não achas?»
Respondo.
«Nisso tens razão. As casas onde fomos felizes e infelizes. Tudo conta.»
De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Abr/2018(167)
Da casa dos meus pais lembro o cheiro dos biscoitos de limão. O grande prato de cozido à portuguesa que depois sabia a sopa de hortelã. A gargalhada do meu pai e os cuidados comigo e meus irmãos durante os dias as noites e os anos. AS CASAS tornaram-se depois em refugios carapacas que trazemos às costas como o caracol. Vou me arrastando cada vez mais lentamente dentro delas .O que gosto mesmo é dos pauzinhos ao sol…
Boa noite Jorge!!
Este texto….é particularmente interessante, sim somos a soma de tudo o que recebemos..tudo o que demos e também do que nos tiraram. …
O que a vida nos deu e levou de volta….
As casas e tudo o que vivemos, mas também aquilo que não pudemos viver….fazem de nós o que somos……
Também me emocioneo ao ler este texto…as casas trazem memórias de quem nelas viveu connosco….trazem memórias do que fomos e já não somos porque a vida nos trocou as voltas
..
Abraço Jorge…obrigada
Obrigado Raquel. Os caminhos da vida. O que traze m os desde o princípio de tudo. O que gritámos e calámos. Tudo anda ao nosso lado. Abraço
Este teu texto faz-me lembrar um poema sobre as camas. Não me recordo de que autor…
Uma viagem pelo percurso de vida.
Obrigado Sofia. Não conheço esse porma. Conheço alguns passos da vida. Abraço
Que deliciosa e dolorosa viagem, fiz consigo! Somos a soma dos restos de mim…tantas vezes mo repito! Gostei muito do comentàrio da Dona Ivone e da Cristina F. Abraços aos três.
Rectifico “Sou a soma dos restos de mim”
Obrigado Natália. Os despojos do nada. Que bem disse. Abraço
Obrigado Natália. Respondido abaixo.
Brilhante como sempre. Assim como nós temos as nossas vidas também as casas ganham vida com a vida que partilham. Também passei por várias casas e nelas decerto deixei algo de mim e elas fizeram parte desse instante de vida. Tudo foi dito neste belíssimo texto que hoje o poeta Jorge partilha. Brilhante. O meu obrigada.
Obrigado Isabel. As casas somos nós e os nossos delírios. Os passos dados e por dar. Abraço
Deliciosamente aconchegante o tema desta crónica, poeta Jorge. Os aromas , as mensagens amáveis da família, o ninho. Todas as suas maravilhosas palavras me fazem remeter à minha meninice. Os olhos de doçura de minha Mãe, as doces carícias, os beijos.
O bolo de canela , bolo espanhol, o arroz doce. Muita emoção de um tempo que ficou lá atrás , mas me acompanha sempre. Os canteiros do jardim , os jasmins, as rosas, as hortas. Foi a minha casa amável da infância. As outras casas que vivi , foram diferentes, mais momentos menos bons. Obrigada , por mais um momento maravilhoso de escrita. Um abraço amigo.
Obrigado Ana. Tudo o que faz de nós o que somos. Os cheiros todas num saco. Abraço.
Lindo!
Obrigado Isabel. Abraço.
Uma… tantas casas!
Uma casa pressupõe quase sempre uma cara feminina a habiitá- la a dar- lhe o seu cunho pessoal . Ela própria também é do género feminino …
Como que
A cara das casas !
Obrigado Lenea.”A cara das casas”. Isso mesmo. A importância das mulheres! Que bem dizes. Abraço.
As casas. As nossas as dos outros aquelas de que nos despedimos com tristeza as outras com alegria. Uma vida nova quando se perdeu quase tudo . Obrigada por hoje me fazer recordar. Um abraço
Obrigado Isabel. Os ratos da vida. Sibaus, cheiros e nomes. Tanto. Abraço
As vidas de uma casa ou as casas de uma vida. São feitas de nós, do nosso crescimento, dos nossos sentires, com eles os cheiros vão modificando. Sempre imaginei que damos vida aos locais, não importa se o habitamos todos os dias. Não é fácil fazer esta viagem, mas, é gratificante se tivermos coragem. Curioso este texto Jorge. Um abraço Amigo.
Obrigado Regina. Somos um mapa dos nossos percursos. Carregamos cheiros, hábitos, cabelos e noites. Abraço.
Gostei imenso desta viagem ao passado e à infância! Que maravilhosas recordações: As casas, os cheiros, as comidas, as brincadeiras com os amigos, as cumplicidades e o mar, claro! sempre o mar não esquecendo nunca os afectos! Tudo isto conta na formação do que hoje somos. Bravo Jorge! Fiquei encantada com esta narrativa. Muito obrigada, um beijinho
Obrigado Madalena. Viajar pelas recordações que nos marcam a vida. Os soalhos do tempo. Abraço
Os soalhos do tempo…magnífica definicão!
Obrigado Madalena.
Grande texto meu amigo,tanto como as casas e as assoalhadas onde tantos e tantas habitaram a vida e o coração grande como uma praceta onde convivemos lado a lado numa ou muitas casas nossas.O coração é também ele uma casa grande onde por vezes habitam,habitamos os outros. Em nós a casa grande onde moramos lado a lado com a vida e o tempo.Na janela da alma observamos e consentimos uma morada de sentimentos e aventuras.Abraço meu amigo!
Obrigado Célia. A nossa rua. O nosso passeio. O quarteirão. As mulheres das casas. Toda a vida num corredor imenso. Abraço.
Querido amigo/irmão, como me emocionei com a tua crónica. Quantas casas as tuas. Sinto-me tão pequena junto de ti. Aqui nasci, aqui fiquei. As casas que tive contam-se e sobram dedos. Onde nasci, a primeira e a onde vivo agora, a oitava. Sempre todas em família e outras onde estava como minhas, porque dos meus familiares eram, e estava nelas com o mesmo à vontade . Sigo a leitura tua e viajo contigo. As diferentes maneiras de as habitar. Também a presença dos cheiros e das mulheres das casas . Penso-te, vivendo como contas, e estou contigo também nas tuas casas. Mas eu sem aventuras que não as mais vulgares. Algumas mudanças inesperadas, mas sempre para dar tecto e companhia aos que iam necessitando. Sempre acompanhada com familiares que necessitavam.. Nem tinha espaço para continuar a contar-te, mas só há uns 4 anos é que estamos, eu e o Joaquim sozinhos, excluindo a companhia da minha Bea durante a semana, enquanto aqui estudou( tempos tão bons ). Agora, velhotes e com a doença do Quim, eu mais presa. Fui retomando, ultimamente, algumas das actividades políticas e sócio-culturais que tinha.. Desculpa o rumo que o meu comentário tomou. Talvez por causa das ” casas “, talvez porque desabafei mais uma vez contigo, porque és o meu amigo /irmão e tens todo o direito de saber da minha vida. Gosto muito do menino que brincava com bonecas . Concordo que nos vamos conhecendo melhor. Assim do longe se faz mais perto. E sim, tens razão. “Somos também as casas onde vivemos e onde fomos felizes e infelizes, porque tudo conta. ” Beijinhos saudosos e ternos. <3 <3
Obrigado Ivone. Uma corrida pela vida. As colchas estendidas. As passadas e os encantos. Os desejos coartados. Os erros e os choros. As alegrias gritadas. Abraço
Querido Jorge, que bonita viagem fiz contigo. Tal como a Isaurinda, tanta coisa me veio à memória. E como acontece em tantas conversas, terminaste esta viagem a pegar no ponto de partida: – O cheiro. E o cheiro que “nunca esquecemos”. O cheiro da mãe. O mais profundo dos nossos sentidos , essa fruição sensorial que nos oferece a sensação de conforto e eterno refugio. Mas tanto que podia ficar aqui a divagar sobre “as casas de uma vida” , esta metáfora que nos leva a reflectir não só sobre a nossa “casa interior” – os nossos pilares, motivações, sonhos… como a nossa “casa exterior”, essa, que na sua “simplicidade”, nos surge como uma possibilidade de aliviar o nosso corpo e a nossa mente, restituindo às nossas vidas, um pouco do tempo roubado pelo excesso de tarefas profissionais, sociais, domésticas… ou seja, restituir à casa, o lugar de refugio e de abrigo, que é tão essencial ao nosso bem estar físico e psicológico. Obrigada por esta viagem. Bem hajas.
Obrigado Cristina. A Mãe. Os seios mais desejados. O colo. O choro calado. As saudades sem fim. Um cheiro que não desaparece. Abraço
As casas onde fomos felizes e infelizes. As ilusões e as desilusões de uma vida.Tudo conta. Tudo ajudou a formar o que somos hoje. Somos a soma de todo o amor e desamor,de tudo o que vivemos.Que grande viagem já levamos nesta vida. Grande abraço.
Obrigado Maria da Conceição. Disse tudo. Somos o somatório das coisas por onde andámos. Virar a vida. Abraço