Crónica de Licínia Quitério | Os meus dias da rádio

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Os meus dias da rádio

por Licínia Quitério

 

Faz muitos anos que, menina que eu era, vivia fascinada pelo som que se soltava daquela caixa castanha e polida, com um vidro cheio de letras e números onde, rodando um botão, se fazia navegar, para trás, para diante, um ponteiro fininho, não mais do que um risco preto no vidro iluminado. Era o ponteiro ao parar que fazia ouvir falas de homem, de mulher, ou músicas, tocadas e cantadas. Eram os dias da rádio.

Fui crescendo com o que as vozes vindas da caixa me iam dando. Não perdia o teatro radiofónico que me deu a conhecer belas vozes de actores em peças que eu “via”, na minha imaginativa encenação. Apercebi-me dos diferentes registos que as vozes alcançavam, das incríveis modulações de cuja possível existência eu não me tinha apercebido nos falantes em meu redor. Não sei quando comecei a procurar a minha própria voz e a ensiná-la a soltar-se, a caminhar, numa tentativa ingénua de imitar as grandes actrizes que a rádio me proporcionava, Eunice Muñoz, Carmen Dolores, só para citar duas das maiores.

O tempo permitia-me aprimorar os gostos pelo que havia de bons programas culturais. Aprendi muito com a rádio. Lembremo-nos que ainda não tinha chegado a televisão e muito menos a “nossa” internet. Era portanto a rádio que me punha ao corrente do mundo e me despertava o apetite por livros e autores. Costumo dizer que fiz pela rádio um bacharelato, assim como me divirto a declarar os meus vários doutoramentos via Google. Transmitidos pela Emissora Nacional, recordo os programas, creio que semanais, Rádio-Drama e Teatro das Comédias. Grandes vozes masculinas me enchiam de admiração, das quais posso citar Paulo Renato, Rogério Paulo, Álvaro Benamor, entre outros. E os programas de Poesia dita, e tantos outros que me proporcionaram bons momentos e me ajudaram a crescer distinguindo mediocridade de qualidade.

Sem ser esperado, chegou o dia em que me inscrevi, com toda a ousadia, num concurso para locutores de rádio, da responsabilidade do SNI, justamente apelidado de Secretariado Nacional da “Propaganda” (do regime, diga-se). Sem me aperceber bem da aventura em que me metia, dei comigo aos microfones da Rádio Graça, dos Emissores Associados de Lisboa, a fazer provas e mais provas, perante um júri presidido por Jorge Alves, esse grande profissional da rádio. Passei na primeira eliminatória, na segunda e na terceira, e cheguei a ser um dos dez finalistas seleccionados entre centenas de concorrentes. Foi a minha aventura radiofónica, jovem que era a experimentar caminhos.

Muito mais tarde, acompanhada por um amigo, autor de teatro radiofónico, encontrei-me com o senhor Álvaro Benamor que me pediu para chegar ao microfone e ler um pequeno texto que estavam a ensaiar. Quando acabei, ouvi a voz dele, magnífica: “Tem um bom timbre.”. Era comigo. Foi essa uma das frases mais bonitas que alguém me disse.

Como vão longe os meus dias da rádio!

      Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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