Crónica de Licínia Quitério | O lenço

 

De ontem e de hoje – O lenço
por Licínia Quitério

 

Trazia um jornal desportivo dobrado debaixo do braço. Baixote, franzino, poderia parecer mais novo, não fora aquele desalento nos cantos da boca que o bigode grisalho não lograva esconder. Teve dificuldade em fazer rodar o manípulo da porta do café, o que indiciava não ser frequentador habitual. Com olhar rápido, avaliou qual das mesas disponíveis lhe seria mais conveniente. Escolheu a do canto, longe da entrada e do balcão. Mal ele se sentou, a D. Mimi, sempre atenta aos circunstantes, disse para as amigas: ”Parece uma pessoa tímida. Nunca o vi por aqui.” Pelo sim, pelo não, cruzou as pernas com a possível elegância, enquanto se abanava com o leque dos cinquenta anos sem substituição hormonal. Por momentos, abrandou a tagarelice do grupo de senhoras, unidas teimosamente por pequenas intrigas a disfarçar solidões.

O recém-chegado fez sinal discreto ao empregado e pediu com voz cava de alguma bronquite persistente: “Uma bica bem cheia.” Foi então que a D. Ester, que estivera muito interessada a ler a notícia do divórcio da princesa que gosta de domadores de leões, deu um salto na cadeira. Aquela voz… Virou-se para a mesa de onde ela vinha e quase gritou: “Arnaldo!” O senhor teve um pequeno estremecimento na mão que virava a folha do jornal, olhou a senhora que já se dirigia para a sua mesa e disse: “Perdão, minha senhora. O meu nome é Gregório. Ao seu dispor.” A D. Ester, com cara de quem depara com um fantasma, conseguiu dominar-se, recuou, apoiou a mão nas costas da cadeira e atirou: “Queira desculpar. Confundi o senhor com outra pessoa.”

O grupo levou algum tempo a recuperar a estabilidade. Foi preciso rearrumar cadeiras, rodar chávenas. “ Então, Ester? Um engano qualquer tem.” Ester só murmurava: “A voz, a voz, ia jurar. Pois. Já lá vão tantos anos.” Gregório tomou a bica depressa, folheou distraidamente o jornal e pôs uma moeda sobre a mesa. Fez menção de se levantar, mas antes tirou o lenço do bolso e limpou o desalento dos cantos da boca. Já a caminho da porta, meticulosamente, dobrou-o e tornou a pô-lo no bolso. Saiu sem olhar a mesa das senhoras.

À D. Mimi não há pormenor que escape. O lenço era branco com o desenho bem visível de um A num dos cantos. O grupo iria continuar coeso, alimentado por mais uma intriga miudinha. “Não penses mais nisso, Ester!”

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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