De ontem e de hoje | O Herlânder e a Neuza
por Licínia Quitério
Hoje bateu-me à porta alguém vindo de um tempo em que todos eram velhos, uns mais do que outros, a não ser o Herlânder e a Neuza e todos os que eram novos como eu. Só os velhos, uns mais do que outros, é que não pulavam todo o dia e alguns ficavam muito sossegados nas cadeiras, com ou sem mesa, calados ou a conversarem.
Lembro-me bem de um velho que nos dias de Sol se sentava no degrau da porta e dizia adeus a quem passava. Eu gostava daquele velho que parecia saído de um livro de histórias e talvez por isso passei a dizer-lhe, bom dia, boa tarde. Ele respondia, bom dia menina, boa tarde menina e fazia um sorriso que deixava ver que só tinha dois dentes de baixo, coitado. Ainda hoje quando passo pela casa que tem um degrau que teve um velho que tinha só dois dentes, por dentro da minha cabeça surge o sorriso bonito que me dizia, bom dia, boa tarde menina, como se eu não tivesse também ficado velha.
Como eu ia contando, a mulher que hoje me bateu à porta era daquelas mais velhas que já devia ser velha quando eu, o Herlânder e a Neuza corríamos, rua abaixo, rua acima, e gritávamos, porque só os velhos é que falavam baixo e devia ser por isso que nós não os ouvíamos.
A mulher tinha um lenço preto a tapar os cabelos brancos que eu bem os vi a espreitarem por cima da testa. No outro tempo, havia muitas mulheres com cabelos brancos escondidos em lenços pretos. Eu, o Herlânder e a Neuza até nos ríamos delas que pareciam as bruxas das histórias, mas não tinham vassouras. Algumas tinham só os cabos e não sabiam montar-se neles, por isso andavam muito mal e nunca voavam.
A mulher velha que hoje me bateu à porta trazia um ramo de flores parecidas com as que havia no quintal da minha avó e que agora já não se usam. Disse-me se as queria comprar e eu fiquei admirada porque as flores do quintal da minha avó não eram para comprar. Também não eram para roubar, mas era o que eu fazia, sem ela saber, para dar à Neuza. O Herlânder dizia que flores eram coisas de menina e ele não era maricas.
Nem todos os dias aparecem velhos de outros tempos a baterem-nos à porta e eu até pensei em contar isto à Neuza e ao Herlânder, mas depois é que me lembrei que eles já cá não estão e quem sabe se a Neuza agora não corre tanto rua abaixo rua acima e o Herlânder gosta de flores, sem medo que lhe chamem maricas.
As pessoas mudam muito.
Licínia Quitério
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