Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A MULHER

Licínia Quitério

A MULHER
por Licínia Quitério

A mulher diz, sente-se, coma, aqui come-se o que vem para a mesa, quando é que cortas esse cabelo. A mulher não pergunta se queremos mais, mas percebe-se que podemos servir-nos as vezes que quisermos. A mulher não diz, obrigada, mas a gente sabe que gosta de mimos. A mulher ameaça, olha que levas, mas a mão suspende o gesto, a saber-se obedecida. A mulher tem opinião, declara-a, defende-a, com a fala grossa e o corpo adiantado. A mulher gosta de ser ouvida a desfiar a vida, o rosário de dores que se orgulha de ter vencido, com muito esforço, sem nunca ter deixado de ser brava, digna. Ela diz “séria” e não “digna”, com toda a razão da palavra. É impiedosa para com quem a fez conhecer a miséria, a dela e a dos outros. Fala da ditadura e explica-a como ninguém, porque a sentiu, a entendeu, a adivinhou. Sente-se vingada do silêncio que lhe impuseram, do medo da prisão que levou os pobres da aldeia, coitados, o que sofreram, malvada gente. A mulher conheceu outros mundos e neles sofreu e aprendeu o que escola alguma pode ensinar. Sente-se vingada da pobreza porque hoje tem o conforto que a labuta lhe deu, tão duras as tarefas que lhe rebentaram o corpo, a fazê-la gemer baixinho.

Oiço-a com enlevo, com curiosidade, até que ela põe termo à conversa, levanta-se, olha em volta e diz, para onde foram todos, vou ver deles, assim à maneira de recado para mim, por hoje já ouviste o que eu quis contar, agora chega. É ela quem decide quando começa e acaba a conversa.

Quem quiser saber o que foi o fascismo em Portugal tem de encontrar mulheres como esta, de as ouvir, com atenção, com a humildade de quem tem muito para aprender. Aconteceu-me conhecer esta que tanto me tem ensinado.

Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019) – dois contos – Disco Rígido e Disco Rígido – Volume II – três romances – Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem e A Tribo (em publicação) – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

 


Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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