Crónica de Licínia Quitério | A ouvidora

 

De ontem e de hoje – A ouvidora
por Licínia Quitério

 

Devo ser uma boa ouvidora, já que amiúde me procuram pessoas para que eu as oiça. Chegam e ficam, durante horas, a falar, a contarem-me histórias, verdadeiras ou inventadas, tristes ou alegres, vulgares ou inverosímeis. Vidas que parecem banais, lineares, que no desfiar da voz se desenrolam, se desdobram, se alimentam, se  excedem, se sossegam. Não sei quantas histórias já ouvi, quantos relatos de amores, de dores, de perdas, de carências, de desditas, também de comicidades, de curiosidades, de extravagâncias. O ouvidor pode conceder um intervalo na solidão, um tempo de inclusão no relacionamento humano, com um pequenino aceno de concordância ou discordância, sinal de uma presença viva, atenta, paciente, disponível. Nem sempre voltam, os faladores. Há os que se arrependem de terem feito confidências a quem nada perguntou, por recearem a quebra do sigilo que a conversa impõe. É assim com os menos confiantes em si próprios e nos outros, com os tímidos, com os orgulhosos. Voltam muitas vezes os que se entregam, os que se dão, os que procuram decididamente o outro extremo da própria voz.

Ouvir quem quer ser ouvido não é uma ciência, é uma arte que involuntariamente vou aperfeiçoando, com os falantes me enriquecendo, me entristecendo, me percebendo um pouco mais.

Muito do que tenho ouvido é passado ao papel, numa intenção de guardar a memória de algo ou de alguém que me aconteceu. Verdade ou mentira, não é isso que me interessa. Tento não fazer julgamentos, não dar conselhos, não emitir opiniões, limitar-me a ouvir, a aceitar a dádiva, a aconchegar uma palavra, uma frase curta, a soltar um riso se for de rir, a mostrar um ar contristado se for de entristecer. Confesso que nem sempre consigo a desejável contenção, o quase apagamento.  Demasiadas vezes, faço interrupções, forço explicações, arrisco o fim da história e assim desgosto o falante que eu decepcionei. Outras vezes, cansada do papel de ouvidora, desando sob qualquer falso pretexto, atitude que invariavelmente me causa um certo desconforto, um pequeno remorso. Fraquezas de humanos que ouvem e são ouvidos, na procura mútua do entendimento, do apaziguamento da inata solidão.

Licínia Quitério

 

 


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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