Crónica da Ausência
por Jorge C Ferreira
I
Treme o chão. Trememos nós. Treme o Mundo. Placas que se unem e desunem. Placas de vírus, lamelas dos investigadores. Microscópios e mais outras máquinas esquisitas. Quanto mais se descobre mais fica por saber. A experimentação. A corrida para o vazio.
Nós esperamos.
II
Os que morrem. Os que acrescentam os números e determinam as curvas, nesta curva difícil da vida. Há quem sobreviva e se cure, e seja a recompensa para os que o trabalho é salvar vidas, curar. Os que entram em depressão e entram num estado perdido. Não se escondam, falem connosco. Saber das caixas por fechar. Cuidar da saúde mental, tão importante nestes tempos.
Cuidem-se
III
Olhos grandes sai à rua de óculos escuros, luvas e máscara. Para conhecer Olhos grandes tem de se conhecer o seu andar, o seu respirar a dois metros de distância, o seu cheiro. A falta que Olhos Grandes faz a tanta gente. Olhos saídos de uma cara sonhada. Cara agora tapada.
Quando veremos Olhos Grandes de Novo?
IV
As praias vão ter sinais e lotação como os parques de estacionamento. Vai haver uma distância onde ninguém se toca. Quando forem à água? Não sei. Isto está a ficar cada vez mais estranho. Vou tomar um duche.
V
Turco, pai, assassinou um filho friamente. Uma criança que estava no hospital com a nova doença. Foi com uma almofada que lhe foi tirando o ar até ao fim de tudo. O hospital deu a criança como mais uma vítima do novo vírus. O homem apresentou-se quinze dias depois e confessou: «Matei-o, porque nunca gostei dele. Nunca o aceitei. Estou no meu perfeito juízo.»
A maldade da loucura.
VI
Os três estarolas. Uma comédia para aliviar a tensão. O Mário, o António e o Marcelo. O diz que disse. E lá foram mais uns milhões. As reuniões nocturnas e a história refeita. O faz de conta.
Nós a pagar.
VII
Os livros que não chegam. Os correios entupidos. Quem anda a escrever a quem? A vida a abrir. O sol a chegar. A temperatura a aumentar. O pessoal e a praia.
Abriu a minha esplanada!
VIII
Chegou o livro da Raquel Serejo Martins, uma peça de teatro, “Preferia Estar Em Filadélfia”. Que bom. Fui à minha esplanada. As desinfecções e as máscaras. Uma bica, em chávena, por fim. Ar livre.
Soube-me bem.
IX
Hoje é dia da Poesia. É o aniversário de Maria Teresa Horta. A “Minha Senhora Poesia”, a Minha Amiga Especial. Hoje foi dia de voltar a folhear os seus livros e a ler os seus Poemas.
“Minha Senhora de Mim”, “O Segredo”. Um Abraço.
X
Dia de não sair. Deitar e acordar muito tarde. Um cansaço que volta de vez em quando. A preguiça. Por aqui ficámos numa morna conversa entre livros e trabalhos manuais. Mais um quadro na parede.
Festejar a vida.
XI
A volta da Isaurinda. A minha ilha o meu Fogo. Um porto que é sempre um abraço. Uns olhos muito abertos e uma lágrima. Esta aventura crioula. A caldeira.
Isaurinda, tantas saudades.
XII
Um dia passado entre sonos, sonhos e verdades. Mais um dia de notícias pesadas. Mais um dia de asas negras. Pairam os abutres nuns céus agoirados. América Latina e África suam as dores da pandemia.
Choro por eles.
XIII
Morreu Maria Velho da Costa (Fátima), das três Marias resta a minha Amiga Maria Teresa Horta. Tempos que se vão evolando num fogo que perdura na memória. As Novas Cartas Portuguesas, quem as irá escrever de novo? Beijos Marias.
Da Rosa Fixa.
XIV
Visitar o meu menino no Jardim da sua casa. Nada de afectos ainda. Muita vontade nos olhares. A sua serena conversa. Os seus hábitos revisitados. As suas estórias. Depois fomos jantar fora como se fosse a primeira vez.
A esplanada e o bife do lombo.
XV
Quem me traz a vontade de calcorrear as ruas da minha vila. Sou osga. Ainda tenho comerciantes com lojas de rua com quem não falei. No café as mesas muito afastadas. Falta um salão de baile onde se dançasse cumprindo as regras estabelecidas.
O baile.
XVI
As vídeo chamadas. As várias aplicações. Cada pessoa em seu lado. A ternura a esvair-se entre as fibras que nos trazem a imagem. A distância iludida. E se a rede falta?
Há quem se beije através dos ecrãs.
XVII
É esta ausência assim escrita que aqui vos escrevo. Dias e dias em que o tempo se modificava a cada instante. Este modo diferente de estar na vida. Agradecer a companhia de todos.
Cuidem-se.
Jorge C Ferreira Junho/2020(252)
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
Ausência marcada e contada.
Inodora brisa que nos bate pela ausência de gente e o poema que nos arrebata.
Teresa Horta, a sua própria Poesia.
Maria Velho da Costa e o adeus consumado.
Honremos o legado da coragem que nos é deixada, com ternura mas também paixão.
E para que conste, escreves os dias. Aparo fino e marcante. Tal como a tua crónica. Assim perdurará como todas as outras.
Abraço de mim neste canto da vida.
Obrigado Isabel. É sempre bom ver-te por aqui. Fico feliz. A escrita dos dias. Tens razão. Abraço
E eu também ☺☺☺
Momentos difíceis que nos obrigam a mudar hábitos viciados, enraizados, empedernidos, tirando-nos do sério e pondo-nos à prova. É um exercício de braço-de-ferro contra um invisível que pode estar em qualquer à espreita numa corrente de ar.
Só temos que nos cuidar!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Os dias gastos. A vida parada. Grato pelo comentário. Abraço
Querido amigo
Como foi bom voltar a lê -lo. Esta crónica de ausência retrata bem o momento em que vivemos. Sempre sensível ao que nos rodeia. A memoria dos que vão partindo. A presença virtual dos que estão perto e ao mesmo tempo tão longe. Saudades de Olhos Grandes sem máscara. Visita fugaz dos filhos e netos. Um abraço mal sentido, mas que sabe tão bem.
A saúde e a idade que não dão tréguas.
As suas crónicas e os seus textos são maravilhosos. Ajudam a colmatar as ausências.
Obrigada.
Abraço.
Obrigado Eulália. É sempre gratificante ler os seus comentários. A presença ausente. Abraço
Meu querido Jorge, lemos-te e sabemos que és tu que nos falas. Sim, não me enganei. É, mesmo falas que escrevi. Eu ouvi-te a dizer-me( nos ), o que sentiste e sentes nestes dias. Falta-me o teu abraço, tão especial e sentido, mesmo a muitos km de distância. Trazes contigo a magia do teu pensamento. É mágico o modo como sentes, escreves e nos envias esses bocadinhos de afecto com que, também ,nos alimentas o espírito. Sabes o desgosto que tantas de nós sentimos com a morte da Fátima, Maria Velho da Costa. A Isabel já partira e, agora,ficámos com a Maria Teresa Horta. Uma das três Marias que ajudaram a abrir o espírito de Mulheres , inteligentes, cultas, mas quantas vezes amordaçadas em casa, no trabalho, no seu País.
Que bom reencontrar-te e saber que estás à distância de um click. A vida desta fase de pandemia mudou muitas vidas. Uns para sempre partiram. Os velhos, como eu, são olhados de lado. A verdade é que ” viver também cansa “. Tempos difíceis.
Beijinhos meu querido Irmão/ Amigo. Toma bem conta de ti e dos que amas. Nós precisamos das tuas palavras, da tua presença . Beija os que amas. Sei que não gostas das máscaras que perturbam o encontro com ” Olhos Grandes “. Põe o sorriso dos teus olhos e, com esse brilho, beijas.
Obrigado Ivone. Tão belo o que escreveste. Não mereço. Temos de nos cuidar uns aos outros. Temos de ser fortes. Abraço-te muito.
Querido Jorge,
É sempre com emoção que te leio. Esta tua crónica é o teu reflexo. Uma escrita que nos deixa e sabe a saudade. Uma ausência sempre sentida. A escrita lúcida e doce que aguardamos ao fim do dia. Tanto saber na forma mágica que descreves a vida.
Ainda bem que voltaste a falar mas “Novas Cartas Portuguesas”. Um livro a ler. Quem as irá escrever de novo? – perguntas tu. Que bom te ter aqui de novo. Faz-nos falta as tuas inquietações e a tua lucidez.
Somos nós que agradecemos a tua companhia.
Cuida-te muito e não abuses da paciência da Isaurinda.
Abraço
Obrigado Cristina. Eu é que agradeço a tua companhia. Sabes que muitas vezes isto não é fácil. Os amigos são importantes. Abraço