Crónica de Jorge C Ferreira | Vidas perdidas
Procurar os estilhaços das vidas que já não temos. Vidas sumidas no nevoeiro que emudeceu todas as luzes. Ouvem-se os gritos dos cacilheiros que surgem como que vindos de lugares remotos. Tocam os sinos das igrejas.
O que já não se consegue fazer. Outros sumiços que nos consomem. A memória de uma loucura esquecida na volta do tempo. Um tempo a que parece faltar tempo. Tempo que não sabemos se existiu.
As portas de madeira envernizada. As escadas já gastas. Tantos foram os passos que as gastaram. Tantas as pessoas que por aqueles degraus foram a vida e a sola dos sapatos. O tempo dos sapateiros, das meias-solas e dos tacões.
Os corredores de soalho. O sabão amarelo. As mulheres de joelhos sobre uma espécie de genuflexório rente ao chão. Os joelhos doridos. Um trabalho que não era pago. O cheiro a limpeza sem qualquer spray. O puro limpo. O corpo a queixar-se. Um bengaleiro onde descansam chapéus sem cabeça.
A vida a inclinar-se. O inevitável sobe e desce. Corações que se iam gastando. Os patamares para descansar o lufa-lufa da vida. Ganhar fôlego e continuar. Cinco andares sem elevador. O cansaço calculado quando se começava a subida. Chegar ao cume. Abrir a porta e encher os pulmões de ternura.
Amores ganhos e amores perdidos. Alguns passos desencontrados. As vidas separadas e o amor para sempre. O amor para a vida. Várias gerações que se juntavam à mesa. Não havia televisão. O rádio desligava-se. As conversas apareciam. Os mais novos ouviam e tentavam aprender tudo o que podiam sobre a arte de viver. As mulheres com o seu avental. Os guardanapos de pano com as argolas que identificavam o utilizador. As mulheres andavam num vai e vem entre a cozinha e a sala para que nada faltasse na mesa.
A dureza do trabalho e a escassez das regalias laborais. A revolta contra o regime. Dizia-se que até as paredes tinham ouvidos. Muitas coisas eram sussurradas. Nunca se sabia se havia algum bufo à escuta.
O dia podia nascer soalheiro. As frondosas árvores da placa central da rua rejubilavam. O gato ia para o telhado espreguiçar-se ao sol e voltava sempre com ar feliz. Os pássaros antes de recolherem ao seu lugar, na sua árvore, sobrevoavam o telhado. Um telhado de sonhos. A cidade, o castelo, uma nesga de rio, o pára-raios e os sinos da igreja. Uma quinta em frente. Uma quinta no meio da cidade. A cidade de uma vida.
Toda a gente tinha começado o seu dia. Outra vez a mesma rotina. Arejar a casa. Amália cantava um fado na rádio. Os artistas da moda também. Muita música portuguesa. As notícias que a censura autorizava.
Hoje estás muito saudosista. Que te falta?
Fala de Isaurinda.
Faltam-me muitas vidas. Vidas de quem tenho imensas saudades.
Respondo.
Nem me fales nisso. Sabes também o que sinto a propósito dos meus que partiram.
De novo Isaurinda e vai, as lágrimas a saltarem dos olhos.
Jorge C Ferreira Novembro/2023(415)
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Cada vez a vida transporta mais memórias do que já não é, de vidas que já foram…
~Um abraço, amigo.
Obrigado Sofia. Tens tanta razão. A minha gratidão por estares aqui. Abraço.
As muitas vidas que vivemos. Umas (aparentemente) esquecidas. Outras ainda tão vivas.
As vidas que se embrulharam em nós (ou fomos nós que nos embrulhamos nelas?).
Que seria da nossa vida se não tivesse abarcado tantas vidas?
Que pobres seríamos sem memória de tantas vivências…
É bom ter saudades desde que não nos entreguemos ao saudosismo.
Gostei muito de te ler, como sempre. E de caminhar contigo pelos caminhos onde a escrita te leva…
Obrigado Maria. Como me entendes! As vidas que vivemos e continiam a viver connosco. Somos uma amálgama de situações. Ficou feliz por me leres e por me comentares neste espaço. A minha gratidão. Abraço enorme
Viagem nos tempos de ontem, onde os pormenores são personagens importantes da nossa saudade, ou reflexão do que se fez, ou apenas marcou.
Sentires puros de memórias que ajudam a conciliar presentes momentos, onde o lado comparativo exala um odor pleno de um estar presente.
Momentos em olhares longínquos, onde a lágrima faz colorir Primaveras e os Invernos quedam-se em nuvens plenas de arquivos vividos.
Como é bom ler-te e teclar calendários paralelos , por entre recantos de um pastel de nata e um café cheio, bem iodado de canela!
Grato estimado amigo, pelas leituras que me ofereces marcando páginas de calendários nunca rasgados, mas vividos!
Abraço !
Obrigado José Luis, Poeta. Há acontecimentos que nos estão sempre a aparecer. Memórias, algumas, vindas dos lugares mais recônditos. Instantes que nos fazem sentir o passado. A minha imensa gratidão pela tua presença. Abraço enorme
Crónica maravilhosa. Uma viagem a outro tempo. Memórias de vidas perdidas no tempo.
Vidas na cidade ou no campo, as mesmas vivências. O trabalho das mulheres. O chão esfregado com sabão amarelo. O cheiro a limpeza.
A roupa lavada e esfregada à mão a secar no estendal.
Família reunida, respeito aos mais velhos. Não havia televisão.
Realidade tão distante. Ouvia-se telefonia, música portuguesa e radionovela à hora certa.
Amores e desamores. Encontros e desencontros.
Memórias que construíram o tempo que vivemos. O tempo que foge. O tempo em que tudo acontece.
O grito de liberdade que tantos riscos corre.
Obrigada Amigo por esta viagem magnífica.
Um abraço.
Obrigado Eulália. Irmos ao mais longíquo de nós. Os sabores, os cheiros, os amores e desamores. Que belo o seu comentário. Tão bom ler-me e comentar-me. A minha imensa gratidão. Abraço grande
A sua Crónica, diz-me tanto, li e reli. Tantas coisas tão iguais e outras que me parece que também passaram por mim.
O chão do meu corredor é de soalho, de tábuas estreitas que gosto muito.
Era um bebé acabado de nascer, quando entrei nesta casa. Hoje ainda por aqui estou, sem a preocupação de subir muitas escadas. Agradeço, ao meu querido avôzinho, ter ficado pelo r/c. Tanto me amava, até pensou na minha velhice. Na verdade, nesta fase da minha vida subir custa-me bastante. Esta crónica está deliciosamente bem escrita. A família, era a base essencial para a nossa formação, sabiam tanto. Foi uma geração sábia.
Delicio-me com estas histórias de verdade. Coisas que viveu meu amigo e hoje partilha connosco. Não devo terminar, sem lhe agradecer as gentis e ternas palavras, com que distingue e enaltece as mulheres. Gostei muito.
A minha gratidão, meu amigo escritor. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Sabe que adoro que me leia e comente com essa sua forma terna de dizer. Os nossos maiores sempre. presentes. As mulheres heroínas maiores dessas casas de famílias alargadas. A minha enorme gratidão, minha Amiga. Abraço enorme
nas escadas da vida tudo podia acontecer.
para tantos, íngremes e escorregadias
madeira de esfregar e pôr a luzir
o piso molhado e com cheiro a suor e suspiros.
sulcadas por corpos dobrados, submissos,
esquecidos.
o tempo das renúncias e das palavras que se sustinham nas gargantas. o tempo do silêncio.
de um estar só.
as vidas corridas. contidas. interrompidas.
mal amadas.
perdidas.
desse outro lado do tempo havia queixas e lamentos.
histórias por contar. de nada dizer
pequenas. inúteis. quebradas por dentro.
velas de navios sem pano cru. sem brisas para navegar…
e a cidade.
a acordar. o castelo sobranceiro sobre o rio manso.
as janelas abertas para a manhã. os vasos de sardinheiras pendurados nos parapeitos.
um rouxinol de amarelo na gaiola.
as vizinhas no estendal. curiosas como pardais
os padeiros e os leiteiros numa azáfama.
de casa em casa. de andar em andar…
os gritos dos jornaleiros num cantar.
o engraxador de sapatos num tira põe a abrilhantar as botas do senhor doutor.
as varinas a passar. braços erguidos. o corpo a gingar e as sardinhas com a cor da lua. o pregão solto no ar.
pequenas multidões num sem parar.
a cidade a acordar…
voltar ao outro lado do tempo.
recordar. há sempre alguém que diz não.
há sempre alguém que resiste.
há sempre quem continue a sonhar…
Obrigado Mena. Mais um belíssimo Poema. Que bom receber esta escrita neste espaço. Espero que as pessoas leiam os comentários. O outro lado das coisas. As outras vidas. A monha imensa gratidão, minha Amiga. Abraço grande
Uma crónica, no seguimento de outras, muito pessoal. “Agarrada” às recordações de um tempo histórico e político-social outro. A beleza das palavras num texto a falar sobre a perda. As perdas. E a partir deste sentimento dizer a “constituição” de si. A dor presente a gritar pelas ausências, remetendo para um contexto de vida (maravilhosamente descrito; vemo-lo como retrato) que só na memória se resgata. O não ser de outros e a impossibilidade de substituição sentida como amputação no corpo que sofre as dores fantasmas (tão subjectivamente reais como inexplicáveis (?!)). Dores sucessivas surgem ao longo do escrito. Acentuam o vazio. Esse sentir que não se preenche, antes se acentua em vivências irrepetíveis. As cicatrizes voltam a sangrar. Estancá-las dizendo as recordações de outro modo de ser e estar. Lugares e tempo de presença de quem já não está.
As memórias essenciais do seu crescimento e vida jovem. A descrição dos espaços, Do tempo sócio-político. Da comunicação intergeracional (alimento do ser pessoa). As mulheres. A vida difícil. Tudo é “dito” de forma mitológica. Como se de um tempo inaugural se tratasse (não terá sido??) social e pessoalmente. Rasgado, apagado, esquecido, para si, de um modo aniquilador. Por isso insubstituível. Os novos tempos, vertiginosos, relâmpagos, que o olhar não consegue captar. O pensamento não emerge. Os sentimentos não florescem. Gerações outras, perdidas das anteriores.
Um texto de fuga para a margem. Lugar de libertação e construção de paradigmas seus. Mas nesse movimento há o olhar lateral de quem vê fora da “cena”. Por isso as palavras são acutilantes isentas de miopia ou névoa. (apetecia-me escrever: a lucidez de um homem só; não escrevo; já escrevi). Na salvaguarda de uma identidade que a “todo o custo” luta por estar sã.
O silêncio do grito do escritor ecoa no texto todo. Num ruído vómito. Expulsar o possível (para que se possa continuar) e resguardar, numa preservação de si, a essência do seu ser. Coabitadas pelos seres da saudade, pelos tempos perdidos, pelos lugares não mais existentes. Continuar a existir, num balanço difícil entre a inevitável “adaptação” e a rejeição de um modo de viver estranho e alheio aos seus valores. Um dizer não que se impõe. Não fosse um homem da Liberdade. Um caminho trilhado. Cujo fim se encontra no horizonte.
Obrigado Isabel. Que belo texto. Um comentário próprio de quem sabe os segredos da escrita. Os meus sentimentos postos a nu. As saudades estranha de quem cintinia a viver connosco. É tão bom ter a sua escrita neste espaço. A minha maior gratidão. Abraço grande.
Vidas passadas, vida que se viveu noutros hábitos, já tão distantes e diferentes que nos custa acreditar da sua veracidade. Mas, ainda há gente para comprovar esta verdade: nós!
Os nossos descendentes duvidarão, mas nós ainda sentimos aquele cheiro do sabão azul e branco, do sabão amarelo com que se lavava o chão de madeira, a deixar um doce perfume , aquela escadaria alta que tínhamos de subir mas que o coração agradecia .
O som dos passos, no step by step…
Os sons e os cheiros a juntarem- se em sinestesias saudosas …
Quando o passado nos visita …
Obrigado Lénea, minha Amiga. É tão reconfortante ter aqui as vozes de quem nos lê. Sim, nós somos memória viva de muita coisa que não devemos deixar esquecer. Passar a palavra. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.
Amigo Jorge, junto-me a recordar “vidas perdidas”.
Bela descrição das vidas reais de outros tempos.
Delicada homenagem às mulheres do nosso país.
Sou uma testemunha viva e participei em algumas dessas tarefas, por imposição da minha avó e mãe. Lavei bancos e cadeiras de madeira com sabão amarelo. A roupa era lavada com sabão azul e branco, depois apareceu o “Omo lava mais branco”.
De repente, avivaram-se todos esses cheiros na memória.
Vidas perdidas, tantas. Saudades imensas que doem.
Obrigado Fernanda. O seu comentário é a vida de uma vida. As mulheres eram as heroínas daquele meu tempo. O que eu adorava os seus beijos. O que eu adoro o que escreve. A minha imensa gratidão. Abraço grande