Vidas em comum
por Jorge C Ferreira
Quando as tuas veias invadiram o meu corpo. Quando os nossos corpos se tornaram dependentes. Uma estranha situação. A simbiose perfeita. Um saboroso bem-estar. Corpos separados e tão juntos. Os corações a baterem em uníssono.
Percebemos, então, que somos dependentes um do outro. A vida a não ter sentido sozinha. Fica como se fosse um livro sem páginas. Um livro de não ler. Pressentimos e vivemos tudo em conjunto. Sabemos o que o outro sofre e dividimos o sofrimento. Há quem diga que tal não é possível. Gente que não acredita na sublimação dos outros. Da entrega e da vida abraçada.
Somos uma ilha que vagueia num oceano que inventámos. Já perdemos a conta às marés. Somos mar do próprio mar. Somos montanhas gémeas. Somos a voz que fala ao mesmo tempo. Sabemos das intempéries, da cor da lava, do fogo. Somos o vento que nos leva a viajar, a nuvem que nos abriga. O algodão doce da nossa vida. Uma vinha escondida. O néctar dos deuses mais antigos. Assim nos vamos ligando cada vez mais.
Não podemos sair da ilha, porque a ilha somos nós. Sair de nós é aventura que desconhecemos. Já falámos, muitas vezes, o bom que seria vermo-nos lá de cima. Por certo nos riríamos de nós. Manter essa capacidade. Subir mais uns degraus, irmo-nos conhecendo no desconhecimento que nos quer atropelar. Sabermos um do outro e estarmos dentro um do outro.
Crescem mais vidas assim. Nascem mais ilhas. Cada qual com a sua identidade. Também há ilhas solitárias. De todos os sexos e assexuadas. Tanta bandeira colorida. Os piratas já deixaram há muito estes mares. Estas ilhas corpos. Este sangue que corre em uníssono para o mar. Ilhas que vão acabar por desaparecer. Como muitas outras que não irão resistir à invasão do mar. Oceanos que se irão juntar num crescendo avassalador.
Escrevemos ao mesmo tempo sem saber. Tudo porque sabemos sempre um do outro. Sintomas que ultrapassam todos os sentimentos e pressentimentos. Aventuras e desventuras escritas em tábuas de madeira muito antiga. Um alfabeto único. Sinais de vidas vividas e por viver. Coisas que nem o mar apaga. Noites entregues aos sons da noite. O sangue a fluir. Os corpos ligados. Os corações a partirem corações. A ilha a borbulhar de vida. Os corpos a viver colados. A humidade e o calor, alguma chuva, tanto que muda o clima e nada muda nos nossos dois corpos. Na verdade, muda e nós sentimos. Mas vamo-nos tentando compensar. Vamo-nos complementando. Vamos sendo cada vez mais ilha.
As tempestades com nome de mulher. O mar a invadir as rochas do nosso corpo. Nada nos detém apesar de tudo. Sabemos onde nos esconder. Por vezes escondemo-nos dentro um do outro e ficamos transparentes. Nada nem ninguém nos irá encontrar. Seremos a ilha por descobrir. A escrita que ninguém sabe ler. O tempo que ninguém viveu.
Ninguém sabe a nossa religião. Ninguém conhece os nossos deuses. Somos filhos das nuvens, gritos de mar. A ave que nunca aparece. Somos o que vale a pena. Somos um, somos o outro e somos um todo. Somos a ilha encantada.
«Olha o que tu foste arranjar! Tu queres dar-me cabo da cabeça. Não estás bem, ai não estás não!»
Fala de Isaurinda.
«Esta é a história de quem vive com o outro e para o outro. Nada de especial.»
Respondo.
«Então não. Vai contar histórias a outro.»
De novo Isaurinda e vai, um sorriso malandro na mão esquerda.»
Jorge C Ferreira Setembro/2021(314)
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
Não é apenas uma crónica não, é todo um universo , um entender do outro, uma carta que toda uma geração gostaria de ter guardada no cofre do coração. É absolutamente um horizonte de mil e uma maré com marés de outras vidas. Um oráculo ditado pelos deuses, que belo e sentido esse navegar oceânico com o mar a batizar a união perfeita quando os céticos julgam e apregoam a não existente perfeição. Eu acredito! Salve meu muito amigo pela excelência de um mar tranquilo e sereno que será o tal mar da tranquilidade… Abraço!
Obrigado Cecília. De regresso, que bom! Não sei que te responder. O que escreveste é tão bom que comove. Procuremos o mar da tranquilidade. Abraço
Oh Jorge, isto é tão belo e emocionante que me enche o coração. Quem escreve assim sobre sentimentos é quem verdadeiramente os sente… para nossa felicidade, somos leitores dos teus belos textos sobre amor, amizade, com o sentimento e a emoção que pões em tudo o que escreves. Tão bonito, meu amigo.
Quando me falam de ilhas, o meu coração estremece e os meus olhos brilham de felicidade. Entre ser ilha perdida e solitária no Atlântico, e viver numa ilha, eu prefiro viver numa ilha, a que me viu nascer, Pico, Ilha de Amor e Paixão, rodeada de mistérios, sonhos, desejos…
Sim, só a cumplicidade fortalece qualquer relação de amor, de amizade.
Obrigada, Jorge. Beijinho
Obrigado Manuela. Que belo comentário. Tu que vives numa ilha sabes bem o que é navegar. Sabes conversar com o mar e ss aves. O teu sangue é especial. Grande Abraço
Jorge.
A emoção tomou conta de mim. Possuiu-me. Invadiu o meu lado em carne viva.
O outro. O que se diz num plano mais etéreo e quase
translúcido.
Agora até eu sou ilha.
Até eu encontrei, numa primavera adiada, a minha ilha gémea. A que é terra de semeadura. A que é pasto. A que é floresta. A que me cobre de névoas e brisas marinhas. A que me armadilhou de um amor fora do tempo. Compassivo.
Os deuses debruçam-se sobre tamanha loucura.
Esta tua expressão máxima de um enlace que cresce com o passar dos anos. Que se fortalece. Que é como as montanhas. Os seus picos do outro lado do mundo. Que é como o mar. Agitado e de uma tranquilidade quase inexpressiva.
O quanto nos queremos…
Como nos queremos… Com identidades próprias. Com histórias de vida arrumadas num livro do passado.
Somos o agora. As ilhas-do-desejo. As ilhas- que-se-procuram. As ilhas-do- destino. Se é que ele existe…
Amei a tua crónica.
Como amo cada palavra que faz acrescentar ao amor o sentimento de gratidão.
Somos o que somos.
Enquanto aqui estivermos, sejamos ilhas. Gémeas.
De quem nos rodeia e nos nutre!
Obrigado Mena. És especial. As tuas palavras. As tuas veias. O que somos, enquanto somos. Ser grato é uma obrigação. Eu sou-te grato pelo teu comentário. Obrigado
Remar o barco dividindo esforços por dois, bom entendimento para alcançar o Porto Seguro!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. A difícil epopeia. A vida toda. Caminhar juntos. Grande abraço
Belíssima esta crónica, meu amigo. Li e reli. Tanta sensibilidade. A vida com o outro e para o outro. Dois num só. Nos bons e maus momentos. A vida a não ter sentido sozinha. Pressentir o que o outro sente. O braço que nos ampara. Porto de abrigo.
A dependência que não se quer deixar.
Obrigada pela força que deixa nos seus textos, escritos de forma única.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Sim, minha Amiga, saber sempre do outro. A mão sempre pronta para dar. O Caminho. Obrigado
Uma Crónica tão bela. Vidas em comum.
Li e amei. Doce poesia, uma beleza verdadeira e pura, de amor e ternura. Como só o poeta sabe escrever. Encanta-me lê-lo.
Continue por longos anos, a viver essa saborosa dependência.
Sei dizer-lhe, que perdê-la é muito triste, querido escritor. Sempre grata, pela beleza da sua escrita, de uma sensibilidade ímpar.
Abraço enorme
Obrigado Maria Luiza. Que bom é ler o seu comentário. Quanto sentimento. Quanta sensibilidade. Tudo leu de modo inteiro. Abraço imenso
Uma cúmplice plenitude, pele da mesma pele.
É tão bonita a sua crônica Jorge.
Um grande abraço.
Obrigado Susana. Escreveu tanto em tão poucas palavras. Perfeito o seu comentário. Abraço grande
Uma história de vidas em comum, onde o amor, amizade e ternura são vividas intensamente. Serem um só. Adiviharem-se. A frequência de se sentirem. Almas sensíveis e dedicadas. Atrevo-me a dizer que linda história nos ofereces. Abraço Amigo.
Obrigado Regina. Saber sempre um do outro. Amar e cuidar. Estar de bem com o mundo. Abraço enorme
Uma crónica sobre o sentido da vida,embora possa não parecer. O amor a alimentar os dias e o tempo,a nortear oquotidiano,a preencher o que seria nada. Uma ilha e uma nação na qual somos reis e felizes. O privilégio de sermos simultaneamente um em dois. A aritmética aqui não vale:1+1 não são 2,mas são relação. Neste caso,uma fusão de afectos,wue nos elevam ao “céu”.
Obrigado Isabel. Que belo comentário. Que leitura tão abrangente. Só me resta mostrar a minha gratidão. Abraço imenso