Crónica de Jorge C Ferreira
Uma viagem inesperada
Ir aonde não queremos. Saber o que não queríamos saber. O estômago colado às costas. A cansativa viagem. A estrada sem fim. A desnecessária corrida. Uma paragem para saudar a vida e enganar o estômago. Enganar-me e entrar na casa de banho das mulheres. Ser avisado por uma senhora. Ir para a casa de banho dos homens e avisar uma senhora que aquela não era a casa de banho dela. Um jogo de enganos. Os sexos perdidos e prontamente reencontrados. Coisas tão antigas.
O carro galopa. Os quilómetros percorridos aumentam. O sol incomoda. Ponho o chapéu de palhinha. Lembro-me da minha Mãe me avisar sempre para não apanhar sol na cabeça. Na altura não ligava nada. A Simone a cantar o “Sol de Inverno”, e nós na primavera. Dizem que os termómetros vão disparar para números que nos prometem queimar. O El Niño e La Niña. As temperaturas da água dos Oceanos fora do seu normal. As alterações climáticas. Os acontecimentos extremos. Os meteoritos que nos sobrevoam de forma inesperada. Um falso anúncio de falta de água na minha terra. Toda gente a encher bidons e garrafas. Água que vai continuar guardada. Água que muitos vão desperdiçar. Água que sabe a ouro. O Deserto que avança.
O nosso destino mais perto. O Sol vai-se escondendo. Os moinhos eólicos. As suas enormes e vigorosas pás. Nem um D. Quixote. O vento a gerar electricidade. A luz de que vamos necessitar para a noite. Vou estando atento aos marcos quilométricos. Quilómetro a quilómetro um cruza-se connosco. Números que nos vão dando esperança. O mais recente disco da Garota Não toca no carro. Um CD que é uma obra de arte. A excelente música embrulhada de forma artística. Uma obra para guardar. Uma música que empolga e nos faz pensar. Uma excelente companhia de viagem. Assim continuamos o caminho. Assim vamos sobrevivendo. Não há muito trânsito. Ninguém sofre de sonolência. Estamos cada vez mais despertos e mais perto de casa. Estou desejoso de me desfardar, vestir a roupa de andar por casa. Ver umas notícias, comer qualquer coisa, tomar os comprimidos que receitam aos velhos e descansar. Não é pedir muito. Digamos que é o mínimo exigível.
Chegamos. As portadas fechadas, a porta também. Tudo normal. Despedimo-nos, agradecemos o favor. Ainda pensamos em ir comer fora, o cansaço convida-nos a não ir. Há sempre uns ovos com qualquer coisa que salvam a refeição. Assim fizemos. Assim foi. Assim somos. Simples e pouco exigentes.
Deitei-me mais cedo que o normal. O cansaço da viagem, a cobrança dos quilómetros percorridos. O sono chegou rápido. Agora é esperar pelo próximo dia. Saber acordar.
«Tanto que tu viajaste e agora uma viagem pequena já te cansa!»
Fala da Isaurinda.
«A idade, minha querida, a idade pesa.»
Respondo.
«E os nervos e a impaciência também.»
De novo Isaurinda, e vai, um ar de gozo preocupado.
Jorge C Ferreira Julho/2024(439)
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Obrigado Maria. Tão bom ter aqui as tuas palavras. Palavras de quem sabe ler a vida. O não cansaço que te enche a vida. A minha gratidão. Abraço grande.
Eu é que agradeço as tuas palavras!
Abraço enorme
Sempre me encanta ler a sua escrita. Descreve na perfeição, uma viagem não desejada. Das tais, que ainda não iniciámos e desejamos já estar de regresso a casa. Na verdade, já tanta coisa nos aborrece e cansa. Mas é proibido fazer a vontade à preguiça! É preciso continuar, ainda deve haver algum cantinho para descobrir. O mar é mágico e continua à sua espera. Tudo mais lento, mas felizes por podermos fazer caminho.
Gostei muito, são assertivas e atentas as suas chamadas de atenção, a tantas mudanças no tempo em que vivemos. Obrigada, por fazê-lo é bom lembrar. Gratidão no meu abraço, querido escritor. São sempre únicos os momentos que partilha connosco.
Obrigado Maria Luiza. Sempre belos e generosos os seus comentários, querida Amiga. Há viagens que são dolorosas, muitas pelo motivo que nos obriga a fazê-las. As desnecessárias dores dos ínvios caminhos. A minha gratidão. Abraço grande
Adorei. Acompanhei esta viagem inesperada e cansativa. Ir onde não queremos. Saber o que não queremos saber. Neste verão com tanto inverno, tudo parece virar-se contra nós. O pensamento não pára.
O mundo está do avesso. Desastres naturais, outros que o Homem provoca. Tanta destruição. Nada se aprende com a História. Tudo se repete.
A viagem está a chegar ao fim. A idade aviva as memórias. O pensamento não pára.
Obrigada Amigo, pela partilha, pela reflexão. Por estar sempre desse lado..
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Bonito comentário. Belíssimo comentário. Somos a tal soma de memórias, de esforços obrigatórios. Porque a vida nos empurra para o imaginário. Abraço grande.
O inédito de um conto vivido, no “mergulho” de “interrogações” sucedidas.
Perdoa-me se eu comentar, que o cansaço de uma viagem inédita, não pode ser vitaminado com os contos e encontros de cada cruzamento ou esquina não programada?
Interessante ler-te e ver-te em simultâneo, numa análise romanceada na viagem “programada” dos ponteiros do relógio.
Abraço muito grato, por permitires estas leituras e sentires, tradutores de um criar inédito e verdadeiro do teu escrever.
Que a tua viagem nunca finde em qualquer sinal STOP, porque receberás imediatamente uma reclamação da minha parte.
Obrigado, José Luís, Poeta. Viajamos tanto sem sair do mesmo lugar. Grato estou eu pelos teus comentários e por viajares comigo nesta página. A minha eterna gratidão. Abraço grande.
Bem-vindo a casa.
Bom descanso.
Meticulosa descrição de “uma viagem inesperada” Gostei imenso.
Sei bem como a idade pesa.
Abraço
Obrigado Fernanda. Tudo pesa. Há coisas que cansam mais que outras. Há momentos desencantados, estranhas estradas. A minha gratidão. Abraço.
O bom regresso na ânsia de parar e poder descansar da caminhada…
Linda, longa e sempre inquietas viagens.
Bem vindo de volta, amigo e obrigada 🔵💙🔵
Obrigado Clara. Que bonito o que escreveu. A inquietação é a nossa força para a aventura. Aventuras que nos enformam. A minha gratidão. Abraço grande
A magnifica descrição de uma inesperada e cansativa viagem.
Todas as palavras encadeadas e a fazerem sentido numa narrativa que nunca cansa.
É sempre bom regressar a casa. Ao nosso mundo. Ao nosso canto.
É bom ter-te de volta!