Uma viagem especial
por Jorge C Ferreira
Entraram num jardim que se fez bosque. Escolheram os seus esconderijos. Atravessaram riachos. Construíram um banco e sentaram-se. Lembraram todo o caminho feito até àquele lugar. Um lugar que foi um achado, uma feliz invenção. Estranharam a sua capacidade criativa, a sua vontade de ali estar.
Animais vieram visitá-los. Alguns ao longe, outros, mais afoitos, junto deles. Com eles aprenderam a conviver. Tinham trazido velas para a noite. As velas que acendiam à noite em casa. Assim iam iluminar a sua noite e ver a luz nos olhos um do outro. Era um casal que chamava a atenção de muita gente na rua. Fartaram-se de ser conversa dos outros. Encontraram este exílio, onde pensaram ficar.
A estranha quietude e as imensas descobertas. Estar perto e parecer que estavam no fim de tudo. Uma experiência em que se sentiram livres como nunca. Não se largavam. Unidos iam sobrevivendo. Não se cansavam de estar só um com o outro. Os seus corpos que conheciam sem mapa. As suas bocas ímanes que se atraiam. Iam a uma pequena queda de água que encontraram aprender mais alegria. Molhados se abraçavam e ao sol se enxugavam. Os corpos a exultarem alegria.
Um dia sentiram a falta do mar e decidiram empreender nova jornada. Traçaram um caminho que nunca passaria por terras movimentadas. Partiram à descoberta de uma praia deserta de um outro esconderijo. Seguiram o caminho do sal.
Atravessaram rios e nadaram com os peixes perto dos açudes. Pescaram, fizeram fogo, cozinharam, saciaram-se. Colheram frutos das árvores e coloriram o estômago com frutos silvestres. Quando tinham necessidade de comprar qualquer coisa, só um se deslocava. Não queriam ser vistos juntos. Esta era a viagem da sua vida. A viagem que lhe faltava fazer. Pensavam só nesta viagem. A vontade imensa de a cumprir.
Começaram a aprender a respirar de outro modo. Habituaram-se ao pouco, ao estritamente necessário. Viviam um do outro e sentiam a felicidade de estarem sós. Em cada passo ganhavam vontade para atingir o objectivo traçado. Aquele caminho era só deles. Os corpos cada vez mais juntos. A caminhada a cumprir-se.
Não podiam confiar no tempo. O clima estava a alterar-se. O pinhal enorme que agora percorriam era a sua vida. Um pinhal por arder. Uma bênção que agradeceram. Não sentiam, ainda, o cheiro do mar. Mais uma noite a dormir naquele saco-cama para dois. Nunca se largavam. Não sei se tinham alguma religião, não sei se rezavam a algum Deus. Nunca o saberemos. Sabemos que amam o planeta e que lutam pela liberdade.
Finalmente uma névoa, uma brisa, um cheiro a mar. Ainda caminharam muito até alcançarem as dunas e o caminho para o mar. Procuram o acesso mais difícil, à tal praia deserta. Finalmente o mar e eles. Despiram-se e mergulharam. O sal inundou-lhes todos os poros do corpo que agora ficou com outro sabor. Encontraram uma gruta e dela fizeram a sua habitação. Deitaram-se e não se lembram de quantos dias dormiram. Acordar com o nascer do sol de um dia que foi mais que outro dia na sua vida. O beijo daquela manhã teve um sabor inesperado. Foram mergulhar de novo.
Foi a última vez que foram vistos. Há quem diga que foram em busca de outro mar. De nada há prova ou notícia.
«Que estória! Fiquei cansada. Têm de encontrar esse casal.»
Fala de Isaurinda.
«Contei o que sabia. A mais não sou obrigado.»
Respondo.
«Contaste o que inventaste e te apeteceu. Conheço-te bem.»
De novo Isaurinda e vai, um andar muito desconfiado.
Jorge C Ferreira Outubro/2023(409)
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Um conto magnífico , tão bem trabalhado que daria um mini-filme apelativo.
Excelente dote criativo nos traços que ousas esculpir, por entre momentos de uma criatividade ímpar. Apenas aquela senhora ousa desafiar-te com exclamações curiosas … as quais seguramente sorriem no teu interior, e exclamas em surdina:
– Notável desafiadora!
Gostei de conhecer esse “casal mistério”, por aqui “descoberto” e sem dúvida a merecer um capítulo seguinte na saída da gruta envolvente.
Grande abraço, amigo que muito estimo e admiro!
Obrigado José Luís, meu Amigo, poeta. Fico muito feliz que tenhas gostado deste texto. Desta busca do sonho. Muito grato. Abraço grande.
Obrigado Clara, minha Amiga. O comentário é belo e está no local certo. Vamos esperar pelo nevoeiro. Vamos inventar vidas. A minha gratidão. Abraço
Tão bela esta história que nos conta.
De um amor único. (Aquele que ficará sempre connosco.) Dois corpos que se fundiram, nesse mar especial que encontraram e numa conchinha “ cor de rosa” se aninharam, para sempre.
Adorei, meu poeta. Meu contador de histórias de encantar, nunca perca a vontade de nos falar de amor.
Sempre grata, deixo o meu abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Muito grato pelo seu belo comentário. São histórias que nos inundam a vida. O mar, sempre o mar. O impossível. Abraço grande
A viagem mágica da cumplicidade no amor.
Os sonhos, os desejos e…o Mar para os abraçar.
Obrigada pela viagem!
Maria, obrigado pelo teu comentário curto e perfeito. Escreveste tudo em poucas palavras. A minha gratidão. Abraço
Falta abrir uma agência de viagens que inclua um programa como tu desenhaste este.
Seria talvez:
“A ´´Ultima Viagem”, inscrições abertas para aqueles que se amaram muito na vida.
Passagem para dois, sem regresso.
Programa: durante o dia e à chegada, vão sentar-se num banco forrado de jasmins e o seu aroma será de tal forma intenso que as aves mais belas do céu virão sentar-se a vossos pés e entoar os cantos mais belos até ao anoitecer. Vão dormir um sono profundo e ao acordarem vossos pés já serão refrescados por pequenas ondas de águas mornas de um rio azul. Daqui virão dois anjos de asas brancas que vos levarão
para uma nuvem branca no céu, onde já habitam outros seres puros, crianças e animais que foram felizes na Terra.
Ainda ninguém se inscreveu.
Obrigado Fernanda. O teu comentário é uma bela história. A tua arte de escrever ficou aqui plasmasda. A minha gratidão. Abraço
Quanta lucidez, quanta imaginação de todos os detalhes, elaboração de sentimentos entre ser e estar nessa realidade tão pessoal quanto escrevinhada de imensos sentimentos pessoais aliados duma realidade quase romance, quase irrealista , quase muito do se são e foram pelo lugar desse vosso mundo tanto de ilusão como de realidade. Escrever é isso, muito, sempre muito, como tanto do sonho que se tornou realidade.
Obrigada pela vossa realidade, pela tua imensa solidão para reescreveres o visto, o sentir de imenso amor partilhada pela aventura, é de amor e aventura que se sobrevive ao tempo. Abraço!
Obrigado Cecília. Tão bom o que escreveste. Escrever é reinventar-se. Reinventar a vida. Coisas que nos aparecem não sabemos de onde. O mistério da escrita. Grato. Abraço.
Maravilhosa crónica. Em busca do lugar perfeito para viver o amor. Só os dois. O mar como testemunha do amor que os une. De mãos dadas mergulham no mar imenso e vivem a maior aventura da sua vida.
Obrigada Amigo por dar asas á imaginação e viver estas aventuras.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Uma busca incessante. Encontrar o improvável. Os sonhos por cumprir. A sua presença aqui é sempre bem-vinda. A minha gratidão. Abraço
Amigo, amei a crónica.
Amor/paixão, aventura, natureza, liberdade,dos melhores ingredientes da vida.
Escolheram ou criaram o seu lugar sagrado.
Por lá continuam, entre as brumas.
Abraço
Obrigado Fernanda. Consiso e belo o seu comentário. O mistério e a descoberta. Muito grato. Abraço.
Uma crónica história. De um encontro pueril e mágico. A viagem de dois seres que buscam a redescoberta de si na companhia da natureza. Esta insensível aos julgamentos (porventura morais), mas sensível à convivência com outros elementos.
Texto fascinante a desenrolar uma decisão identitária dual. Um casal que se basta num mundo que constroem à sua medida. Amam-se e é tudo. Um desassossego só de corpos e emoções. A resistência a dois e um sentido descoberto a par. A partida impulsionada, quem sabe pelo exterior, mas almejada. Libertadora. Um sonho vivido.
Neste percurso partilhado respira-se um trilho final. A despedida, mas também o encontro. Um último significado: o amor. Viver e morrer no outro. No corpo do outro. Na alma do outro. Retornar ao “início” do pensamento: ser adolescente na adultície. Maravilhar-se nos e com os sentimentos. Mergulhar nesse amor límpido e “ingénuo” e com ele partir. À descoberta do infinito. Antes do fim. Instantes vivenciais no tempo que traduzem o ambicionado sentido de existir (de ter existido). A natureza cúmplice a abençoar, afinal, a simplicidade de um amor livre, libertino e maior.
O ser e o estar em comunhão num universo momentaneamente (ou para sempre) a existir a dois. O grande sonho de um indivíduo permanentemente em busca de si. Sempre a horas de si. Numa solidão inquietante, mas preenchida pelo amada. Reduto dele mesmo.
Poeta, mas ser humano de espantos (de sonhos e anseios, de dúvidas que exigem respostas impossíveis; talvez no sonho e pela imaginação) . No abraço do outro talvez a quietude desejada até…
Obrigado Isabel. Que bom comentário. Uma vids inventads, ou sonhada? Não aceitar esta sociedade que nos destrói e de autodestruição. A minha imensa gratidão por estar aqui e pela sua bela leitura. Abraço.
havia algo que me segredava que hoje trarias uma lenda como esta.
não sei se uma voz ondular vinda
do mar
se um linguajar de heras e suculentas
talvez apenas uma mínima fatia de luar despertando o sonho
sei apenas ter o odor das hortelãs e
das peônias
o sabor das cascas das framboesas e dos damascos
o salvo conduto de um amor permitido
os favores dos favos de mel
dos casulos
dos bichos da seda
a suavidade das estrelas que primaveram
dois corpos estendidos e presos por um manto de rendas e bordados
enovelados por raízes algas e corais
amando-se numa genuína exaltação
ou numa inocente troca de carícias e afectos.
também sei dessa viagem mágica
sublime.
onde tudo parece possível.
os abraços com poemas ditos pelos
lábios sôfregos
os pactos com os anjos e os ecos dos gemidos atravessando o tempo.
as travessias e as sonoridades da natureza cúmplice
o amor-feito como se fora uma canção d’ amigo ou de água pura
esses lugares abeirados de um sol que não faz sombra, da leveza das libélulas e do perfume das maçãs acabadas de colher.
eu senti que hoje adormeceria no regaço da ilusão.
teria um presente de beija-flor
e uma melodia tocada a quatro mãos.
serias tu o mensageiro.
há corpos que se pertencem no interior das almas.
gratidão, meu escrevinhador, meu esteta, meu amigo do sossego das
madrugadas e das janelas abertas
às purpurinas e aos cancioneiros
de amores imortais inquietos.
Mena, obrigado pelos teus comentários. Comentários que são poemas que nos enchem a vida. És de uma criatividade inteira. A minha gratidão pot tudo. Abraço grande
Crónica de Jorge C.Ferreira: “Uma viagem especial” em 09-10-2023
Que história maravilhosa! Quando o amor é imenso os amantes bastam-se a si próprios, desfrutando da natureza e exultando com a beleza que os rodeia. E o mar é perfeito para na plenitude do seu amor se fundirem na natureza. Nunca mais saberemos deles…
A Isaurinda deve conhecer-te mesmo bem, eu não, mas admiro a persistência dessa visão amorosa fora das agruras da realidade quotidiana. Encanta-me que sejas alguém que procura insistentemente tornar visível a essência do que mais importa e é invisível para os olhos.
Obrigado Beatriz. Que bom estares presente neste espaço. Temos de saber trocar as voltas ao que parece inevitável. Inventar a história impossível. Muito grato. Abraço
Obrigado Margarida. Sempre importante a sua presença. A busca do impossível de alcançar. A linha do horizonte onde nunca chegamos. Muito grato. Abraço
Que bonito o teu texto! A vida é maravilhosa, nada mais bonito que amar e ser amado! Bem haja Poeta Amigo Jorge C. Ferreira!
🎼🎵🎶a conchinha caiu na água, mergulhei para ir buscá-la,mas o amor que estava dentro… escapuliu caiu no mar. E dois peixinhos que passaram então pegaram nosso amor…. e agora o mar tem mais peixinhos a andar!🎶🎵🎼
Obrigado Beatriz. Que maravilha de comentário/poema. A beleza da simplicidade. As palavras que nos fazem viver. Grato. Abraço
Obrigado, Claudina, minha Amiga. Sempre uma alegria a tua presença aqui. Procurar a felicidade. Muito grato. Abraço
Que maravilha Jorge. Gostei mesmo muito muito.
Grande abraço
Obrigado Rogério. Que bom estares aqui. Fico feliz que tenhas gostado. Grato. Abraço
Que lindo meu amigo 🌼🌼
Qual D. Sebastião…quem sabe um dia volta o casal de apaixonados… que desapareceu no mar, certamente com o nevoeiro também…
( olhe acho que talvez o comentário não esteja no local certo…mas é o primeiro espaço apresentado depois de ler a sua crônica… aconteceu já!)
Abraço 😘