Uma Quinta
por Jorge C Ferreira
Uma quinta no alto de Vila Franca de Xira do pai de um Amigo nosso. Algumas vezes tínhamos autorização para usufruir da casa. Ou íamos no Wolkswagen 1300 dum amigo, ou de transportes públicos e tínhamos de subir aquela imensa rampa.
Eram fins de semana especiais. Havia a casa dos caseiros e a casa principal. Um tanque e um pátio com uma excelente vista e onde se tomavam banhos de mangueira. Havia um burro que teimávamos em montar e saltar dele em andamento agarrando-nos aos ramos de uma árvore.
A comida do primeiro dia era assegurada pelos caseiros. Era sempre um belo manjar. Depois, dependia. Se o tal Amigo do WV fosse connosco ele cozinhava, senão fazíamos uso dos enlatados disponíveis. Fome não passávamos. Se fosse necessário descíamos à vila.
Era o tempo dos jogos de mesa e das cassetes. A música sempre a bombar do leitor das mesmas. Uma coisa que causava confusão à mulher do caseiro que um dia nos perguntou:
«Que posto é esse que os meninos ouvem que eu não consigo apanhar no meu rádio?»
A resposta pronta:
«São postos estrangeiros que a Sra. não consegue apanhar no seu rádio.»
E assim terminava a conversa.
Deitávamo-nos tarde e acordávamos quando calhava. A vida era saudável e descansada. O burro não gostava muito de nós e nós enxotávamos as galinhas. Era um espaço de liberdade imensa. O filho do dono da quinta era bom de bola e a bola também não faltava. Eu que tinha a mania que era guarda-redes tentava dar o meu melhor. Mas eram as cartas, os cavalinhos, as damas, o xadrez, o monopólio, o dominó e muitos jogos inventados que nos ocupavam a partir do escurecer.
A altura que gostávamos mais era a das festas do colete encarnado. Aí passávamos dias e noites na Vila. Íamos às esperas de toiros. E passávamos a noite, de rua em rua, a comer sardinhas no pão e a beber vinho tinto. Por vezes não chegávamos muito “católicos” a casa. Éramos muito novos ainda. Tudo tinha de ser muito bem camuflado.
O nosso Amigo do WV, que pintava o cabelo de preto asa de corvo e cozinhava para nós, por vezes amuava.
Um dia estávamos a jogar às cartas ele chega à sala, senta-se no sofá e dispara:
«O frango está no forno, demora mais quinze minutos. Quem quiser que o vá tirar.»
Todos continuaram a jogar como se não se tivesse passado nada.
Passado algum tempo ouviu-se de novo a voz do nosso Amigo:
«Pronto, tem de ser sempre o mesmo, não é? Eu vou lá, mas é a última vez.»
Passado pouco tempo estávamos a comer numa mesa feita a rigor.
Esta cena repetia-se muitas vezes. Fazia parte do jogo.
Do filho do dono da quinta não tenho notícias há muito tempo, muitas vezes as saudades batem forte. Toda esta vida foi uma lufada de ar fresco que vivemos. Foi um ar diferente que nos encheu as veias. Não sei se a quinta ainda existe. Não sei se conseguiria encontrá-la.
Tenho saudades de tudo.
«Frescos, muito fresquinhos, não haja dúvidas!»
Fala de Isaurinda.
«Era o nosso tempo. O tempo certo para aquelas aventuras.»
Respondi.
«Sim, sim. A mim não me enganas tu. Isto está muito mal contado. Devem faltar aqui algumas coisas.»
De novo Isaurinda e vai, um sorriso aberto na mão esquerda.
Jorge C Ferreira Março/2022(343)
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Que encontro memorável com as tuas recordações. Tempos que foram, tempos que permanecem com a alegria da juventude, a idade é só mental, se bem que muitas vezes o corpo nos faça lembrar aqui e ali que todos os dias há algo de novo…
A juventude é a eterna lembrança do que fomos e do que dela nos rimos ou choramos tudo pela memória que muito ajuda a contar e recontar todas as vivências. Abraço meu muito amigo!
Obrigado Cecília. Tão bom ver-te aqui. Um retorno ao impossível. Lembrar tudo num relance já um pouco nebuloso. A vida e um filme a preto e branco. Abraço imenso
Podia pegar em qualquer frase e comentar. Vou pegar no “Tenho saudades de tudo”, aliadas ao “Não sei se a quinta ainda existe. Não sei se conseguiria encontrá-la”: também fui, no Domingo, em busca duma casa da minha infância. Não tenho fotos nem o número; sei o nome da rua e tenho a vaga memória de a ter frequentado até há 42 anos…
Fui com a Mafalda, no regresso a casa após um breve passeio. Contei-lhe o que me moveu ao procurar a casa, as memórias a esta associadas.
Vim para casa e escrevi-as, movida por uma certa saudade.
Talvez um dia consiga confirmar se era a que julguei ser. Até lá, vou cultivar as lembranças e associá-las a esta, olhando para o passado com um sorriso.
Um abraço.
Obrigado Sofia. Essas romagens de saudade. Essa nostalgia que por vezes nos invade. Se sentiste o que viveste valeu a pena. Eu, desde que derrubaram o prédio onde nasci, nunca mais voltei à minha rua. Abraço imenso
Jorge querido, uma crónica que me emocionou por vários motivos. O primeiro, a forma ternurenta com que sempre descreves episódios da tua infância/adolescência com a Isaurinda sempre a pensar o mesmo que nós. Depois, porque esse episódio foi passado na minha terra, o que de certa forma ainda me faz sentir mais próxima a ti. Toda a descrição dos acontecimentos tanto no tempo como no espaço, foi-se colando ao meu sentir. Essa quinta no alto de Vila Franca de Xira, será naturalmente no Bom Retiro, não sei se o nome te diz alguma coisa, mas é o nome dessa localidade. A imensa rampa que falas, deverá ser a que eu subia e descia várias vezes ao dia, durante cerca de 3 anos. Era a alternativa à falta de transportes à época para poder frequentar o liceu dr Sousa Martins, penso que ainda hoje existe. Eu fazia o percurso a pé, mas a maior parte dos meus colegas iam à boleia.
Sou ribatejana com muito orgulho, e faço sempre questão de nunca esquecer as minhas raízes, mas nunca apreciei as festas do colete encarnado. Estas ,serviam apenas de pretexto para tertúlias bem passadas um pouco mais tarde, sobretudo com os meus amigos de Lisboa (que achavam o máximo).
A minha avó Emília, a minha mãe e o meu irmão eram aficionados. Tive de ser eu a contrariar a tradição familiar. Na única vez que fui a uma tourada na minha vida, exigi sair a meio. Estava acompanhada pela minha mãe e pela minha avó. Tinha 5 anos. Pedi para nunca mais me levarem. E assim aconteceu.
A história que nos contas, é sem dúvida uma lufada de ar fresco (como adoro, esta expressão e até uso-a bastante).
A quinta talvez ainda exista. Quem sabe um dia ainda te levo lá.
Abraço, meu querido Jorge
Obrigado Cristina. Ainda não devias ter nascido. Tempos de aventuras. Tempos de alegria e encanto. Vivíamos aqueles dias de uma forna única. Obrigado pir estares aqui. Abraço enorme
Como são boas as lembranças que te vêm à mente. Recordar amigos e experiências únicas, da tua irreverente juventude, alimentam a saudade e muitos sorrisos.
Adorei, Jorge.
Beijinhos
Obrigado Manuela. Que bom ver-te aqui minha Amiga. Amigos de uma vida e para a vida. Momentos que não esquecemos abraço grande
Adorei. Saudades. Aventuras no tempo certo.
Sorrio, quando imagino um grupo de jovens, a tentar montar um burro. Desporto radical, nesses tempos. Pobre burro.
Vida saudável e liberdade plena.
A comida da quinta, para saciar o grupo de rapazes cansados de aventuras.
Passam os anos e ficam as memórias de tempos felizes. É bom ter amigos e bons momentos para recordar. Voltar aos sítios onde se foi feliz.
Obrigada, meu Amigo, por tão belos textos. Viagens no tempo.
Grande abraço
Obrigado Eulália. Fins de semana para apanhar um ar diferente. Uma casa só para nós. Muita tropelia. Outros tempos. Abraço grande
Como é bom lembrar a juventude. O encanto do momento, vivido no tempo certo.
Uns dias vividos na quinta, um belo espaço onde em liberdade se divertiam. Havia um burro na quinta. Que fez as delícias de todos. Pobre burro. Como deve ter ficado aliviado, quando se apercebeu da partida dos meninos.
Gostavam de ver a festa do Colete encarnado, touros à solta, comer a bela sardinha assada, que tão bem lhes sabia mas que os levava a pôr o pézinho fora do risco. Felizmente sempre encontraram a casa! Onde o conforto os esperava. Descansar era preciso, para continuarem novas aventuras. Que boa história nos contou. Eu adorei, querido escritor, é tão bom ver pessoas felizes. Obrigada por partilhar os seus belos momentos.
Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Sim, viver a vida no momento certo. Não deixar nada para depois. Gastar as vontades. Momentos inesquecíveis. Momentos nossos. Abraço enorme.
Uma quinta onde a liberdade se dizia com todas as letras!
Um lugar longe do bulício da cidade,
onde tu e o resto da rapaziada aprendia o lazer, o divertimento, a quebra das rotinas e dos dias sem ênfase.
Imagino o burrito a ser montado, a galhofa e o riso, os jogos até às tantas, o futebol e um guarda-redes
à maneira.
As saídas, noite adentro, para as festas do colete encarnado e as pegas de touros. Um copito, aqui e ali, a acompanhar os petiscos e o inevitável cambalear dos corpos na ida tardia para casa.
Imagino-te jovem, cheio de energia
e vitalidade, com muitos sonhos à
mistura e outro tanto de ânimo, espontaneidade, arrojo e alegria sã.
Não só imagino como sei bem como eram esses tempos!
Como voltámos a sorrir ao recordar meu Amigo, meu poeta e sonhador…
Obrigado Mena. Sempre uma alegria a tua presença. O poder da tua escrita. Foram tempos vividos no momento certo. Foi a vida a acontecer. Tudo uma alegria. Abraço imenso.
Folias próprias das idades: tempos que não se repetem do mesmo modo e estilo.
Passados tantos anos são saudades coladas à pele!
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Tempos vividos, tempos lembrados. Passos que demos na vida. Marcas que ficam. A aprendizagem. Grande abraço.
Bons rapazes e uma quinta. Aventuras a cores. A excitação sem horas, até um pobre burro existia. Será que a quinta ainda existe? Um conto divertido. Quantos mais terás vivido. Assim se faz a vida. Os rapazes! Abraço grande Jorge
Obrigado Regina. O nosso tempo e o tempo de um burro farto. Aventuras e desventuras de uma vida vivida. Abraço grande
“Por vezes não chegávamos muito “católicos” a casa.”
Quase um remate de um “recuo” de saudade em tempos do nosso crescer, e o acto redactorial desse testemunho que fortalece o nosso viver de hoje.
Excelente !
Abraço caro amigo!
Obrigado Regina. O nosso tempo e o tempo de um burro farto. Aventuras e desventuras de uma vida vivida. Abraço grande abraço
Obrigado José Luís, Poeta. Sempre bom ver-te aqui. Tempos de viver e aprender. Alguma inconsciência e a busca da liberdade. Assim crescemos. Abraço forte