“Uma Parede de Vidro”
As lágrimas derramadas numa noite de solidão. Um vidro de onde se parte para o Mundo. O Mar a derrubar as barreiras que lhe querem impor. Um barco que parte para destino incerto. Flores raras que cantam serenas baladas. Uma montanha escrita a negro num quadro branco. Uma nuvem mais agreste. O pronúncio do temporal.
Corri estrada acima em busca do pingo maior de chuva. Nem uma aberta. A estrada é uma corrente de água contra quem luto. As galochas e o fato de oleado a defenderem-me e a defenderem-se. Nem uma ave voa naquela noite. As luzes estão num lusco-fusco. Continuo a corrida na busca do impossível. De repente o tempo muda. Uma brisa quase quente aquece o viver. Das chaminés continua a sair um fumo de não sei quê. Que terra é esta? O que me deu para procurar já não sei o quê?
Volto para casa. Deixo as galochas e o fato de oleado, depois de devidamente sacudido, à entrada da porta. Espreito para o fundo das galochas, nem um pingo de água, nem um peixe perdido. Ouve-se o Mar. Já não chove. Sento-me num sofá muito velho que já tem o meu feitio. Pego num livro sobre barcos e tempestades, algumas aventuras com fim feliz e alguns naufrágios. Lembro-me de um Amigo que nunca mais apareceu. Ficou pelos mares da Ásia.
Largo aquele livro e esqueço-me da tormenta. Leio algo sobre o amor e a liberdade. Leio sobre a revolução de costumes em que estive metido. Uma tempestade de outro cariz que virou o Mundo do avesso. Enquanto leio, lembro-me das ameaças que vão surgindo de gente sem princípios. Penso nos que vivem na pobreza extrema enquanto os senhores dos novos poderes se banqueteiam numa orgia de desmandos e crescem na gulodice de ter cada vez mais e mais. Uma coisa que, para quem pensa e é justo, enoja. Eles nem nisso pensam. Têm portões altos nos seus condomínios e, nas suas empresas, homens de mão que arriscam para fazerem parte da manada. Se algo correr para o torto têm muito dinheiro em sítios estranhos e escritórios de advogados para lhes prolongarem os processos até que nada faça sentido.
Os temporais sucedem-se. Tenho a segurança da minha parede de vidro. Desde lá vejo o que quero e o que não quero. Choro tristezas e sonho com alegrias. Os barcos a passarem. As luzes dos longos caminhos. A incerteza do futuro. Os exames em atraso. As análises que não apresentavam qualquer sinal que obrigasse a cuidados maiores. A parede de vidro é agora uma cascata de chuva intensa. Os ramos das árvores abanam. Não, desta vez não vou sair. Gosto deste espectáculo. Sinto-me seguro. Não, não vou sair. Entro em estado melancólico.
Decido colocar um disco. Um disco de vinil. Uma canção eterna. Um cantor imortal. Uma canção que nos envolve. Momentos que vivemos nas palavras dos outros. A música é suave, a orquestração que nos coloca no meio de tudo o que se diz. Assim me vou enterrando no meu sofá. Uma estratégia do sono e do sonho. Deixo-me ir. Espero acordar com os primeiros raios luminosos. É o tempo.
«Que viagem fizeste hoje! Por onde andas tu? Estás bem?»
Fala de Isaurinda.
«Sim, estou bem. Criei este ambiente e senti-me bem. Expulsei algumas coisas que me preocupam.»
Respondo.
«Ai, ai, tu põe-te fino. Não andes para aí macambúzio.»
De novo Isaurinda e vai, o dedo indicador da mão direita a rodar na testa. A chamar-me louco.
Jorge C Ferreira Fevereiro/2020(237)
Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.
Obrigado Regina, Sim, sempre os afectos. Sempre a vontade de abraçar a vida. O encanto da vida. Abraço.
Há momentos que se tornam instantes,tempestades emocionais,há sempre um recanto onde a bonança se apraz ao descanso. Vivências intermináveis,memórias inesquecíveis,ter vontade de comandar,fazer,tentar alcançar o melhor para todos em igualdade. O mundo a girar,a igualdade e a desigualdade,os momentos onde nos inundamos procurando sobreviver ao sentido emocional que nos faz ser humanos,querer o melhor dos mundos (…) A diferença está em nós,num desassossego intermitente procuramos a calmaria para sossegar a inquietação…
Obrigado Cecília. Sim, minha Amiga. Tornar o mundo melhor. Dar a volta às coisas. Abraçar a ternura
Abraço.
Belíssimo texto. A constante luta pela liberdade. A procura do desconhecido. A incerteza. O refúgio atrás das paredes de vidro. A fragililidade.
Os poderosos cada vez mais poderosos. Grito de revolta.
O sofá onde se vão enterrando os sonhos.
Que belíssimo despertar com estes textos. Transmitem a força para continuar a acreditar.
Obrigada amigo.
Um abraço.
Obrigado Eulália. A liberdade, sempre. Uma parede de vidro, pode ser um refúgio ou uma tentação. Gritar pela justice. Abraço
Ninguém é louco sem provas dadas mas todos temos necessidade de um deslize para descomprimir e acalmar.
Ficamos pensativamente loucos quando nos dão contas das loucuras alheias, consentidas aos poderosos; essas loucuras que nos esventram de mansinho, filtradas no crivo do tempo até que delas deixem de falar, rindo-se de nós.
Lamentamos, sem mais nada podermos fazer, até que o tempo dê lugar a outras loucuras que ocupem o espaço no tempo perdido.
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. As loucuras dos não loucos. A doentia mania da acumulação. Tudo o que já pagámos e iremos continuar a pagar caso nada mude. As agendas políticas e os casos plantados para encobrir outros. Abraço
Querido Jorge, como gostaria de conseguir abordar todos os sentires que esta belíssima crónica me proporcionou. A eterna vontade de partir. Ir ao encontro do desconhecido. Ah mas quantas vezes somos surpreendidos por situações que nos abalam e nos alteram toda a nossa rota. O sabei permanecer. E voltar atrás. Porém, nunca desistir. Nunca deixar de sonhar. Regressar ao nosso sofá e recarregarmos as energias. Os livros e o mar, Jorge, sempre contigo. A força que eles te oferecem. Duas grandes paixões . O Amor e a Liberdade. Que vivem em ti. Por isso sofres com tantos temporais a acontecer. Choras as tristezas. Sonhas as alegrias . Assim vais vivendo, junto da tua parede de vidro. Aconchegas-te no sofá , ao som da mais bela melodia . E com ela deixas-te ficar, ao encontro de ti.
A dicotomia dos sentidos. A vida em absoluto.
Abraço
Obrigado Cristina. Que belo o teu comentário. Pouco a acrescentar. Que nunca nos falte o sonho e a ternura. Abraço
Na agitação de maus tempos a parede de vidro que permite tudo veres e te protege. A música que encanta e transporta para a tranquilidade de quem luta pela liberdade e não vive sem afectos. Será um sonho ou inquietação de tanto sentires. Até para a semana Jorge. Abraço grande.
Regina, desculpa, o teu comentário está fora do lugar. Abraço.