Crónica de Jorge C Ferreira | Uma oliveira na Azinhaga

Jorge C Ferreira

 

Uma oliveira na Azinhaga
por Jorge C Ferreira

 

Uma oliveira na Azinhaga. Uma árvore ou um sinal? Uma casa térrea. O analfabetismo num país sem rumo. Os velhos sempre sábios. As letras a aparecerem da terra e das pedras. O campo e o seu duro trabalhar. Aprender a ver a vida desde pequeno. A injustiça sentida em cada acto da força bruta.

Saramago, planta herbácea, planta que dá flor. Coisa de crescer e se fazer ver. Saramago nome que foi dado a alguém que não sabia qual ia ser o seu futuro. Saramago ficou e foi crescendo. O Jerónimo e a Josefa, sempre por perto. Eles e a sua imensa sabedoria vinda do princípio de tudo. Do início por descobrir. Os mais sábios de todos para o pequeno e grande José. A planta a crescer e a flor a brotar. A terra que não parava. A estranheza da vida. A inquietude. Sempre a inquietude.

Atravessar o rio. Um rio imenso. Chegar à cidade grande. Tudo tão diferente! A falta da tal oliveira. Estudar até onde foi possível. Era assim a bruta vida. O trabalho e as leituras nocturnas. As bibliotecas. Os livros que não estavam e continuam a não estar ao alcance de todos. A vida a passar. Tanta vida lida entre os candeeiros acesos da biblioteca. Queimar as pestanas. Tanto modo de vida descoberto.

A “Terra do Pecado” a primeira aventura na escrita. Livro que durantes muitos anos renegou. E eu com ele na minha biblioteca. Um longo caminho. Um longo escrever, emendar, rasgar, reescrever. Vários livros, mas o escritor ainda aquém de si mesmo. A planta que continuava a dar flor e a oliveira que continuava frondosa na Azinhaga. Até que uma reviravolta na vida o leva a refugiar-se para escrever.

“Levantados do Chão”. Assim aconteceu e um novo escritor nasceu. Uma nova escrita. Um novo contar. Causar a discussão e a aceitação. O reconhecimento.

A partir daí cada livro seu passou a ser acontecimento. Salas grandes. Divulgação cuidada. Um editor dedicado. A escrita a ganhar magia. A oliveira cada vez mais frondosa. “O Memorial do Convento”, Blimunda e Baltazar. Sete Luas e Sete Sóis. Um passo ainda maior para a sua enorme afirmação.

A oliveira da Azinhaga cada vez mais vibrante.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis” e muita gente a fazer aquele roteiro de Lisboa. O sonho e a realidade. Um romance para passear e sonhar. Um heterónimo de Fernando Pessoa a passear connosco em Lisboa. Uma Lisboa que não se esquece.

A planta herbácea a dar flor. A oliveira da Azinhaga cada vez mais intensa. Os livros a passarem de mão em mão e a conhecerem outras línguas, outros mundos. O escritor sempre interventivo. Sempre pronto. A obra a crescer.

Os prémios sucedem-se. Em 1998 o Nobel da Literatura. Honra maior para ele e para todos nós. Mas a obra, as suas intervenções cívicas e políticas iriam continuar. Estava nessa altura a viver em Lanzarote. A cegueira e a estupidez nacional a isso o levaram.

Sim, uma obra essencial: “O Ensaio Sobre a Cegueira”. Um livro que não se consegue deixar de ler. A cegueira é horrível. Ainda tanta cegueira por aí!

Um escritor que se continua a ler. Faria agora cem anos. Seria uma festa bonita. Vamos fazê-la na mesma. Vamos lê-lo.

Obrigado, José Saramago.

Sei que a oliveira levada para Lanzarote está bonita.

«Gostei do que escreveste.»

Fala da Isaurinda.

«Ainda te li coisas do José Saramago.»

Respondo.

«É verdade, qualquer dia peço-te para me leres mais.»

De novo Isaurinda e vai, um ar resoluto.

Jorge C Ferreira Novembro/2022(374)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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15 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Uma oliveira na Azinhaga”

  1. Maria Matos

    Maria Matos, 7 de Dezembro 2022, 23.12
    Obrigada José Saramago por tudo o que nos proporcionou, e proporciona, do seu legado literário maravilhoso!
    Obrigada, Jorge por tão bela homenagem!

  2. António Feliciano Pereira

    Boa tarde, Jorge! Ler José Saramago é a maior homenagem que se lhe pode fazer! É perpetuar a memória de quem está vivo nas publicações que escreveu.
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. A imortalidade do escritor é continuar a ser lido eternamente. Saramago é um caso raro. Uma criatividade à solta. Grato pela sua presença. Abraço enorme

  3. Eulália Coutinho Pereira

    Bela crónica de homenagem a José Saramago. Grande escritor. Caminho de vida nem sempre fácil, nem sempre compreendido. Escrita interventiva em tempos difíceis. Prêmio Nobel o reconhecimento merecido. Lanzarote a ilha da felicidade.
    Vamos festejar Saramago.
    Obrigada Amigo por e,sttar desse lado.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Saudar o escritor e a sua escrita universal. Continuar a ler as suas obras. Um caso raro de acreditar que tudo é possível. Muito grato eu por estar aqui. Abraço forte

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    É sempre belo o que nos transmite, pela “voz” da sua escrita.
    Tanta injustiça, naqueles que trabalhavam a terra.
    Tanta gente sábia, no meio de tanta dureza. Felizes os que descobriram os seus dons e ouviram, pessoas sábias.
    Que bela homenagem, dedica a José Saramago!
    Sempre conhecedor e assertivo em cada palavra sua. Gratidão, por partilhar o que tão bem escreve, querido escritor. É imparável a sua abençoada mão. Abraço enorme.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza, minha Amiga sempre generosa. Saramago é uma inspiração. Uma vontade de ler mais. A minha gratidão pela sua presença neste espaço. Abraço grande

  5. Regina Conde

    Excelente crónica. Enorme homenagem ao Escritor de cem oliveiras. Muito obrigada meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigato Regina. A minha gratidão pela tua presença. Abraço grande

  6. José Luís Outono

    Tocante e bem apelativo das artes literárias que enriquecem o nosso Portugal
    Parafraseando Isaurinda – ” Gostei do que escreveste”.
    Grande abraço amigo que muito estimo e admiro.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, meu Amigo, Poeta. Devemos sempre enaltecer o que é bom. O que nos incentiva para a leitura. Grato pelo teu comentário. Abraço grande

  7. Isabel Soares

    Uma bela crónica sobre um grande escritor. Um génio de raízes assentes na terra. Na pobreza e crueldade da vida. Na dureza de um quotidiano simples, curto e fechado. Na improbabilidade, ali, emerge um ser único. Sim. Uma natureza inquieta. Simultaneamente espantada e revoltada.A realidade pessoal crua e sem adereços conduz esse homem a uma indagação e reflexão únicas sobre várias essências. De tudo isto nos dá conta este cronista.
    Uma homenagem em relato poético sobre a magnitude da obra de um escritor único e também de um percurso de vida e origens difíceis. Peculiares, que, vulgarmente, não origina génios.
    E Lisboa. Cúmplice e segunda mãe do escritor. O espírito inquieto. Uma mente de um jogo genético fabuloso germinou. E cresceu a uma dimensão impensável. Tão bem dito, neste texto. A este quero acrescentar uma nota: só um ser humano de princípios íntegros e sensibilidade superior assim escreve sobre um colega. Cuja oliveira, se não me engano, reside na capital. Esta árvore símbolo da magnitude de escritos. Textos construídos em sangue, verdade e discernimento únicos e especiais. Revolucionários e revolucionantes.
    Aqui um génio é afirmado com a tónica nas suas raízes. Sem estas não há chão. E é com este que a revolução de um ser acontece. Revolução interior a provocar revoluções externas. Um marco. Um símbolo. Um génio. Um exemplo. A esta “leitura” somos conduzidos pelo autor.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Sempre assertivos os seus comentários. Acrescentar mais seria estragar. Vamos continuar a ler e divulgar Saramago. A minha gratidão pelo seu comentário. Abraço enorme.

  8. Ivone Maria Pessoa Teles

    Parabéns, parabéns, parabéns, meu querido Jorge, meu Amigo/ Irmão. SARAMAGUIANA me confesso. O primeiro Livro que li foi ” LEVANTADO DO CHÃO e não parei mais. Também comprei o ” TERRA DE PECADO “. Tenho todos os seus Livros. . Adorei a tua Crónica. Muito boa, mesmo. Está lá TUDO. Beijinhos amigos.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/ Irmã. Tantas coisas em que somos iguais. É sempre tão bom ter aqui os teus comentários. Abraço enorme

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